A terceira (e quarta) parte do artigo sobre as Moiras Encantadas de Consiglieri Pedroso, enviado pelos amigos Inês e Silvério, cujas duas primeiras partes se publicaram ontem e anteontem:
PAPEL MALÉVOLO
IV – A concepção das Moiras Encantadas como génios maléficos, que perseguem o homem, ocasionando-lhe diversas doenças, que tão vulgar é na tradição eslava, desapareceu quase que completamente da nossa mitologia. Apenas a temos encontrado na seguinte passagem, já por nós citada num estudo anterior, e que se refere a uma superstição ainda hoje em vigor no nosso Alentejo. Em Vila Alva, a madrugada de São João é supersticiosamente temida, sendo crença que ninguém a essa hora deve sair para o campo antes de o sol nado, para não encontrar cobras encantadas, a pentearem cabelos negros.
Indirectamente, parece-nos porem, que nas superstições abaixo indicadas se conserva um reflexo da concepção aludida, sob a forma de uma espécie de culto expiatório ou propiciatório junto às fontes, i. e. o elemento habitado pelas Mouras.
Numa fonte chamada do “Castro”, perto de Bragança, quando há uma criança doente, levam-na o padrinho e a madrinha no dia de São João, pegam-lhe um pela cabeça e outro pelos pés e mergulham-na em cruz na fonte. Depois despem à criança o fato velho e deixam-no ao pé da água abandonado, depois de lhe terem vestido outro novo. Em seguida retiram-se.
Na Maia curam-se as sezões apanhadas na água pela forma seguinte: a pessoa que vai nadar, quando sai da água, atira cinco pedrinhas ao rio. Tapa logo os ouvidos e fecha os olhos para não sentir o som da pedra caindo na água, dizendo, “água na fonte, maleitas no monte!”.
Quando uma pessoa tem sezões, deve enganá-las da seguinte forma: vai em jejum ao pé de uma fonte, com três bocados de pão ou de outro qualquer alimento; põe em seguida o pão ao pé da água, dizendo: “come tu, como eu como!” e vai-se embora. O doente fica sem as sezões, que passam para quem comer o pão (Guimarães).A mulher ou qualquer fêmea a quem falte o leite, vai beber à fonte e o leite volta. Há-de porém, deixar uma “oferta à nascente” ovos, pão, linho, azeite, vinho, etc. (Ponte de Lima).
O que até agora fica publicado refere-se à tradição oral do nosso povo, de onde foi coligido. Nos processos, porém, inéditos da inquisição portuguesa, encontram-se alusões muito circunstanciadas às Mouras Encantadas, o que prova que nos séculos XVII e XVIII a crença nestas entidades míticas era, do mesmo modo que hoje, geral em todo o país.
Num estudo anterior indicamos duas curiosas passagens a este respeito. Mais algumas temos contudo a mencionar.
Assim num processo da inquisição de Lisboa, uma Moura Encantada que está num palácio subterrâneo, aparece transformada numa pomba mulher, e quando a mesma mulher a agarra para que ela não fuja, a dita pomba faz-se outra vez em mulher.
No mesmo processo, também uma Moura Encantada num palácio pede, para poder sair, um copo de água de cinco fontes (sic) e umas folhas de hera.
Em outra passagem le-se o seguinte: “ … e se achou a Ré (Rosa Maria) numa casa, que parece ser de Aboboda, a parede de uma parte cheia de umas falhas (folhas?) muito luzentes, que parece diamantes, na outra um monte de barras mais pequenas, que as dos ferreiros, ao outro canto um monte de patacois, tudo dis ser amarello e na parede donde dis estão as d.ªs falhas (folhas?), esta um cinto da groçura de um homem, também com suas pedras, e mais outra couza do feitio de um canudo, com um vidro em sima, e outro em baixo; outra couza com uns arcos retrocidos e com uma pedra do tamanho de um ovo que dá mais carlidade que todas as mais que as escruas he o mesm; e andando-lhe mostrando tudo lhe perguntara, qual lhe parecia milhor se quanto tinha visto, se os seus cabellos, e ella lhe dissera que os seus cabellos, e lhe respondera boa ventura tivestes. Estes, dis a mulher (a ré) são como fios de outro cahidos pelas costas abacho…”.
Aí fica publicado tudo quanto agora nos foi possível coligir acerca das “Mouras Encantadas” no nosso país. Esta monografia é susceptível de grande desenvolvimento, por isso que deve haver ainda na tradição oral do nosso povo muitos pormenores e porventura traços característicos da lenda, que não lográmos até este momento coligir, por ex. talvez os que se referem às Mouras como entidades malignas, de que só indirectamente achámos vestígios.
Outras superstições por último ainda temos encontrado relativamente ás Mouras de que por ora não nos foi possível encontrar correspondentes nas mitologias estrangeiras. Assim, é tradição que as Mouras do Pilar (o Pilar é em Lanhoso, onde há um santuário de Nossa Senhora do Pilar, no mesmo morro onde fica o castelo de Lanhoso) no dia da festa da Senhora (dia de são Pedro) vê à noite roubar doces, quer aos compradores, quer às doceiras. As crianças, para evitarem o furto, metem os doces debaixo do travesseiro, e as mães aproveitam a superstição para lhos furtarem de noite (quando não querem que elas os comam), dizendo que foram as Mouras que lhos tiraram.
Na Citânia, havia uma mina (explorada depois pelo nosso amigo Martins Sarmento) que se dizia habitada pelos Mouros. Contava-se que quem ia à boca dessa mina e pedia uma esmola aos Mouros, estes davam-lha. Uma vez foi lá um homem pedir-lhes esmola; eles prometeram-lha, com a condição, porem, de o homem ir comprar-lhes um pão a Braga, indo e voltando sem dizer uma palavra do que lhe tinha sucedido. O homem foi, mas passando por casa, não teve mão em si, que não contasse tudo à mulher, quando voltou, contudo, à mina com o pão, comprado em Braga, em vez da esmola, que esperava, recebeu uma bofetada com uma “mão de ferro”.
Depois de escrito e impresso a presente monografia, coligimos a seguinte adivinhação popular, em que o símile é tirado da superstição que estudámos:
Entre trinta e duas pedras brancas
Está uma moira encantada;
Quer chova, quer faça sol
Sempre está a moira molhada. = língua.
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Merece especial atenção a parte referente às Maias, que no sul do País são celebrações realizadas em Maio e terão eventualmente origem no culto da antiga Deusa Maia, que, segundo os irmãos Ferreira do Amaral, poderá derivar da arcaica Deusa-Mãe Cujo culto foi trazido para o Ocidente por povos indo-europeus vindos pela via mediterrânica, na movimentação dos chamados Povos do Mar, ocorridas no fim do segundo milénio a.c..
De referir também as supracitadas «três Marias» fiandeiras, que evocam as tríades femininas célticas, ou celto-romanas, as chamadas Matres; também em número de três são as fiandeiras do Destino clássicas, as chamadas Parcas ou Moiras (Cloto, Láquesis e Átropos, que em Roma se chamam Nona, Décima e Morta).
Tal como as Moiras da tradição portuguesa se encontram nas imediações de poços e/ou fontes, também as três
Nornas germânicas, equivalentes às três
Moiras helénicas, se reuniam em torno dum poço.
Havia entretanto, na Antiguidade tardia, o culto das
Fatas, agrupadas em trios, que por Sua vez terão originado as
Fadas da tradição popular.
Com efeito, parece haver no mais arcaico fundo mitológico indo-europeu ou pelo menos europeu arcaico a figura da(s) (três) Deusa(s) fiandeira(s), que no norte germânico é(são) representada(s) nas três Nornas e no Báltico pela Deusa Laima e as Suas duas irmãs.