Fui passar as vistas pelo quarto filme da personagem «Indiana Jones».
É, como os outros, uma aventura «familiar», mais ou menos juvenil, com a diferença de que, desta vez, os maus da fita não são os do costume, a saber, os «nazis», mas sim os comunistas soviéticos, o que, bem vistas as coisas, é raro no actual cinema americano.
Até que enfim, dir-se-á, até que enfim que um produto de entretenimento destinado às massas - o maior e mais poderoso veículo de propaganda ideológica da actualidade - resolve ter como vilão a hoste comunista, pois que afinal a História oficial já afirma que Estaline não foi menos carniceiro do Hitler, até o foi mais, quantitativa e, pela óptica nacionalista e ao fim ao cabo natural, qualitativamente também: alegadamente, o germânico de bigode curto matou gente doutro(s) povo(s), ao passo que o georgiano de farto bigode assassinou gente do seu próprio povo, e em maior número.
Claro que a comunistagem saudosa dos tempos soviéticos não gostou da chegada ao cinema desta novidade:
Os comunistas de São Petersburgo manifestaram-se hoje indignados pela estreia na Rússia do filme de Steven Spielberg Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, considerando que este visa «provocar uma onda de anti-sovietismo».
A acção do mais recente filme da saga Indiana Jones decorre em 1957, um dos períodos marcantes da guerra fria, e o arqueólogo (que nos outros filmes enfrentava nazis e seitas indianas) tem de enfrentar oficiais do KGB e soldados soviéticos sob o comando de Irina, uma vilã com sotaque ucraniano interpretada por Cate Blanchett.
Para os comunistas da segunda maior cidade russa, o filme tem por objectivo «criar na juventude moderna uma ideia deturpada da política externa soviética da URSS nos anos 50 do séc. XX».
«Vincamos decididamente a nossa profunda indignação face à estreia na Rússia do filme-provocação, resíduo da guerra fria, pasquim nojento: o filme de Spielberg: Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal» , lê-se num comunicado distribuído à imprensa pelos comunistas.
Segundo os seguidores de Marx, Lénine e Estaline, «o filme apresenta, de forma caricatural e feia, as acções dos soldados soviéticos e dos nossos serviços secretos, que são cínica e cruelmente liquidados pelo super-herói americano Indiana Jones».
«Semelhantes invencionices formam, na nova geração de russos, disposições decadentes, falta de confiança no poderio do seu país, adoração dos Estados Unidos», acrescentam.
Os comunistas de São Petersburgo também manifestam perplexidade pelo facto de esse filme ter sido adquirido para exibição na Rússia.
«Lançamos um apelo aos espectadores para assobiar o filme durante a estreia nas salas de cinema de São Petersburgo e enviar cartas de protesto aos fantoches do imperialismo: Harrison Ford e Cate Blanchett» , sublinham os marxistas-leninistas.Independentemente do aspecto ideológico, é natural que um indivíduo não goste de ver o seu país a ser atacado num produto ficcional. Enfim, a Democracia é mesmo assim, há que aguentar; os Alemães, por exemplo, tiveram de suportar em cima dos chavelhos doses industriais disto mesmo, durante décadas; agora também os povos que viveram sob o signo foice-martelo podem «ouvir das boas», por assim dizer.
E, neste aspecto, a película até nem está mal feita de todo - para além do quase saudoso clima de guerra fria que fica tão bem num filme, ou numa série, o objectivo, no filme, dos vilões soviéticos, está bem pensado e adequa-se perfeitamente à ideologia em causa: controlar os pensamentos de toda a população da Terra, a começar pela do Ocidente livre (o capitalista, digamos, à época inimigo do bloco de leste...) tornando-a comunista sem que esta população disso sequer se aperceba. Assim de repente, traz à mente as acusações de sovietismo que de quando em vez se fazem à União Europeia.
Quem for ver mais esta historieta do arqueólogo caubói de chicote pode pois analisar isto por si mesmo, além de poder também apreciar a beleza da sempre bela Cate Blanchet.
E, se gostar do género, pode igualmente gramar o tipo de acção que caracteriza os filmes de Indiana Jones: sequências e mais sequências de caminhadas em túneis sombrios e repulsivos, e depois pelo menos uma boa meia hora de perseguições de automóveis, já que não há filme americano de acção sem corridas/perseguições de cavalos/carros/motas/aviões/naves, e em Indiana Jones o mesmo se aplica, mas na variante de haver uma data de gajos a saltarem de veículo para veículo em andamento como quem come ameijoas, e até há lugar para um pico de infantilidade kitsch que é a luta de esgrima em cima de jipes a alta velocidade, e depois os carros a afastarem-se e um dos heróis a ficar com as pernas muito abertas e a levar com os ramos dos arbustos no meio das pernas, enfim, a pobreza que se sabe.
Outras das novidades do filme, para além do aspecto político, é a introdução do elemento da chamada «História Fantástica», corrente de pensamento muito na moda nos anos sessenta, e cujas teorias incluíam a tese de que os antigos Deuses das culturas tradicionais eram na verdade extra-terrestres, seres misteriosos vindos doutras paragens (doutros planetas, ou doutras dimensões, ou até do centro da Terra, há para vários gostos) cuja imensa superioridade tecnológica teria sido pelos primitivos terráqueos confundida com poderes divinos.
De caminho, observa-se que, coincidentemente ou não, os «bons» são todos americanos - incluindo um rufia típico dos anos cinquenta - ao passo que os Europeus são: uma tropa de bandalhos opressores (os soviéticos), um falso amigo, corrupto e traiçoeiro (um inglês ganancioso) e um sábio (outro inglês) que está enlouquecido e preso pelos outros Europeus até os «bons» irem salvá-lo.
Para o final, estava-se já mesmo a ver o que ia acontecer com o vasto, riquíssimo e lendário complexo arqueológico em que a acção se desenrola. Eu ainda queria acreditar que desta vez seria diferente, e pensava «Não, o Spielberg sempre foi um bocado infantilizante, mas também não pode ser assim tão primário, de certeza que desta vez o filme americano não acaba com a total destruição dos edifícios históricos e a salvação in extremis dos heróis, desta vez o fim deve ser diferente». Mas não. No fim, o fabuloso e mítico palácio dos antigos é mesmo destruído, e os heróis safam realmente o coirame por uma unha negra. Se os aventureiros americanos de Hollywood existissem mesmo, a UNESCO ver-se-ia forçada a aprovar uma resolução para proibir este tipo de heróis de se aproximarem de vestígios de culturas tradicionais. Porque, nos filmes ianques, tudo isto acaba sempre irremediavelmente destruído duma ponta à outra, que é para nunca mais ninguém poder lá ir, e depois no «the end» ficam só quatro ou cinco «caubóis» a rirem uns para os outros muito felizes. Este quarto «Indiana Jones» acaba exactamente assim, num casamento com toda a gente a aplaudir e a sorrir.
Mas veja-se a coisa, aprende-se sempre alguma coisa.