Saiu finalmente um artigo sobre a inscrição em língua dita lusitana que mais recentemente se encontrou, recolhida no vale da Ribeira da Venda, a norte da vila de Arronches (distrito de Portalegre, Alto Alentejo, Portugal), na propriedade designada “Monte do Coelho”, uma laje de grauvaque, cuja superfície epigrafada terá sido previamente alisada para receber a epígrafe. A inscrição já tinha sido apresentada neste blogue, aquando da referência ao livro sobre os Lusitanos recentemente publicado pelo professor João Vaz, mas entretanto a peça foi estudada com alguma profundidade pelos especialistas: […] XX (viginti) • OILAM • ERBAM / HARASE • OILA • X (decem) •
BROENEIAE • H / OILA • X (decem) • REVE • AHARACVI • T • AV [...?] /
IEATE • X (decem) • BANDI • HARACVI • AV [...?] / 5 MVNITIE • CARIA •
CANTIBIDONE • // APINVS • VENDICVS • ERIACAINV[S] / OVOVIANI [?] /
ICCINVI • PANDITI • ATTEDIA • M • TR / PVMPI • CANTI • AILATIO
Que foi traduzido para Português do seguinte modo:
Para (…) vinte (…). Um cordeiro de erva para Harase. Dez cordeiros para Broineia H(arácua). Dez cordeiros para Reva Aharácuo. Dez T(?) AV(?)IEATE para Banda Harácuo. AV(?) para Municia Caria Cantibidone. Os ovelheiros Apino, Vendico, Eriacaino.
Revelai-nos a vossa vontade por um sinal. Gravamos esta oração de júbilo.
O texto do artigo continua ao longo de doze páginas (ver link acima, ficheiro pdf, três fotos), pondo de caminho a hipótese de o topónimo «Arronches» derivar do teónimo, ou epíteto, lusitano Haracui, mas o essencial do estudo é o seguinte:
No que concerne à religiosidade pré-romana, dir-se-ia que a epígrafe figuraria num local aonde a população se ajuntava para honrar os seus deuses em determinadas épocas do ano, hipótese que também se coloca para Lamas de Moledo, Cabeço das Fráguas e para o altar identificado em Marecos (Penafiel), testemunho de um solene ritual agrário, ligado ao ciclo da vegetação e da reprodução animal.
Atesta-se aqui um ritual muito semelhante ao da suovetaurilia, sendo várias as divindades invocadas: Banda, Reva e Munis, quanto às já conhecidas; Broeneia, jamais registada até ao momento. Divindades invocadas sob um epíteto seguramente tópico, Haracui ou Aharacui ou mesmo Harase (numa diferença de grafia que outras vezes se documenta em relação às divindades indígenas, fruto do ‘contágio’ da oralidade) ou, ainda, sob a forma de sigla H. De realçar a novidade de nos parecer que o teónimo
Munis vem grafado como Munitia e qualificado com dois epítetos, um (Caria) relacionável com outros teónimos indígenas, o segundo (Cantibidone) já documentado em relação a divindade conhecida, Erbina.
Poderão ser referidas na epígrafe outras vítimas, mas a que não parece oferecer dúvida é o cordeiro, em número de dez (o que também constitui uma novidade) e, expressamente, indicado como erbam, ou seja, se a nossa interpretação está correcta, como já estando em idade de pastar (não apenas ‘de leite’).
No domínio da Linguística, escusado será sublinhar quanto esta epígrafe, por estar redigida em língua considerada “lusitana” e por, na verdade, se ler sem grandes dúvidas, vai contribuir para esclarecer questões em aberto.
Como fonte para os estudos históricos propriamente ditos, o facto de, desta sorte, como que se fechar, pelo Sul, a zona atribuída aos Lusitanos, na sequência do que temos vindo a afirmar sobre a presença de onomástica “lusitana” no Nordeste alentejano - Lamas de Moledo a ocidente, Cabeço das Fráguas a norte, Arroyo de la Luz a oriente e Arronches a sul - reveste-se, doravante, de importância relevante, a matizar o que Jorge Alarcão tem vindo a considerar o território deste ‘povo’.
Aliás, nesse âmbito, a ligação com rituais afectos à transumância afigura-se-nos assaz plausível, aproximando-nos, pois, claramente dessa hipótese sugerida por Pedro Carvalho: “A ancestralidade de movimentos e de práticas poderia inclusivamente justificar a sobrevivência em época romana de lugares de culto indígenas na proximidade desses trajectos (junto a mananciais ou em pontos dominantes na paisagem), como forma de propiciar a celebração dos indispensáveis rituais - com sacrifício de animais - que assegurariam a protecção de pessoas e gado”.
Em suma: um texto de teor religioso, ritual, datável - pela paleografia - dos primórdios dos tempos romanos na Lusitânia. Pelas dúvidas que suscita, pelas novidades que traz em termos de designação de divindades e, até, de outra terminologia ainda por decifrar N constituirá, seguramente, um dos achados epigráficos mais importantes dos últimos anos na epigrafia da Lusitânia romana.