Carnaval, celebração de raiz porventura arcaica, baseada na Lupercal - festividade sagrada de fertilidade, em Roma, na qual os homens jovens, vestidos com peles de bode, perseguiam as mulheres e chicoteavam-nas, como forma de as fertilizar - e com alguns traços de outras datas sagradas pagãs - Saturnália, Bacanália, nas quais, enquanto se bebia vinho, se podia falar livremente dos governantes - é um tempo de pura descontracção, em que se pode fazer e dizer, e ser, «o que se quiser» (com os limites que a sociedade actual impõe, relativizando sempre o sentido do total que algumas festas poderiam ter originalmente, pois que, numa época em que são sempre precisos polícias, médicos, enfermeiros, etc., não se pode esperar que todos estejam ao mesmo tempo envolvidos nalguma celebração, como bem notou certo antropólogo francês, Jean Cau, parece-me). No antigo calendário romano, Fevereiro era o último mês do ano, época de contacto com os mortos, de purificação da cidade - é daí que vem o nome Fevereiro, de Februus, Deus Subterrâneo dos Mortos e das Riquezas - tendo assim um ambiente similar ao do Halloween céltico (Samhain, na língua irlandesa), o qual é, para os Celtas, a passagem de um ano para outro.
Em Portugal, o Carnaval está actualmente muito influenciado pela cultura brasileira, o que contribui para um empobrecimento da tradição carnavalesca: um povo sem orgulho, acabrunhado, deixa-se colonizar, especialmente quando toda a gente lhe diz que «aquele carnaval é que o bom, e toda a gente o considera o melhor do mundo».
Só que, diferentemente do que acontece no Brasil, a tradição de cá não é(ra...) mostrar a presunteira com roupas que deixam as pessoas semi-nuas. É muito bom ver as mulheres bem feitas em trajes menores, pois, mas, quanto a mim, estimula-me mais se estiverem com roupas luxuosas e justas ao corpo. Mais vale uma passagem de modelos de alta costura do que um cortejo carnavalesco carioca.
Em Portugal, nos saudosos anos setenta e princípios dos anos oitenta, antes da maciça influência brasileira, as pessoas mascaravam-se a rigor, encarnando certas e determinadas personagens da realidade ou da fantasia.
Introversão e cultura europeia versus extroversão sul-americana:
em Veneza, por sua, vez, vive-se um carnaval feérico, caracterizado pelas suas refinadas máscaras (quem não viu o Eyes Wide Shut ou Olhos Bem Fechados?...). Com o contributo do nevoeiro, que, segundo penso, é frequente nesta altura do ano nessa cidade, o ambiente geral deve ficar realmente envolvente, digno de festejo.
Bom seria que o carnaval português, em vez de receber a influência brasileira, tivesse ficado mais parecido com o veneziano. É que Lisboa até tem a sua névoa e o seu ar melancólico, sóbrio, triste segundo alguns, mas que, visto de outro modo, pode esconder mistérios e riquezas sem fim. Tal atmosfera não combina bem com roupagens verde-e-amarelo e com desfiles à maneira rio de janeirista, mas combina perfeitamente com o cenário construído pela máscara veneziana.
Em Portugal, nos «bons tempos», qualquer um cobria o respectivo coiro com alguma fatiota inspirada nalguma personagem ficcional; e eram incontáveis os que, mesmo não usando uniformes, não deixavam no entanto de ajustar a sua caraça de modo a bem esconder as respectivas ventas.
Assim é que era o carnaval português. Portanto, cambada leitora, vão depressa comprar fatos de super-homens, batmans, homens-aranhas, esqueletos, dráculas, astronautas, políticos, cavaleiros medievais, centuriões romanos, etc.. Olhem que a vida são dois dias e o carnaval são três... mas um já passou.