VIRIATO VISTO PELO DR. FREITAS DO AMARAL
Vi ontem a peça de teatro «Viriato», da autoria do Dr. Freitas do Amaral e em exibição no Trindade.
Tem bom argumento, bons actores, bom cenário, boa utilização da tela audiovisual, bom som, etc..
Dá informações interessantes sobre a Lusitânia, se é que são realmente fiéis à realidade histórica: por exemplo, já li alguma coisa sobre esses nossos ancestrais pré-Romanos, mas nunca vi escrito em lado nenhum que os Lusitanos usassem o termo «cintux» para designar um líder militar. Se bem me lembro, esta palavra é de raiz gaulesa e significa «o primeiro». Não contesto, todavia, que os Lusitanos a utilizassem.
Não sabia, ou não me lembrava, que Táutalo, o qual veio a ser sucessor de Viriato na liderança da Lusitânia, fosse maneta.
Não sabia também que Minuro se tinha recusado a pactuar com a traição urdida pelo general romano, por Audax e por Ditalco. E também nunca me tinha constado que o dito Minuro fosse especialmente religioso.
Pareceu-me que havia ali uma imprecisão de vocabulário histórico, quando as personagens falam na «Galácia». Penso que se estavam a referir à zona para além do rio Douro, ou para além do Minho, e essa área chamava-se GalÉcia e não Galácia. Galécia é a terra dos Galaicos, parentes e vizinhos setentrionais dos Lusitanos; Galácia era a terra dos Gálatas, isto é, Celtas estabelecidos na região da Ásia Menor, actual Turquia.
Parece-me também que, por uma questão de rigor histórico, os actores a desempenhar o papel de homens lusitanos deviam estar vestidos de negro, já que foi assim que o antigo grego Estrabão os descreveu.
Os Lusitanos da peça mencionam várias vezes o «seu Deus»
Endovélico. Ora, tanto quanto se sabe, o culto de Endovélico era da zona do actual Alentejo, mais precisamente do Alandroal, área que pertenceria aos Celtici. Tanto quanto sei, não há indícios do culto a
Endovélico em mais parte nenhuma da Ibéria. E a terra dos Lusitanos propriamente ditos, situava-se entre o Douro e o Tejo (talvez ainda um bocadito a sul do Tejo, mas não muito), sobretudo na zona da actual Beira Baixa. E os seus Deuses, eram
Arentius e
Arentia,
Band,
Crouga,
Trebaruna,
Reva, entre outros.
Claro que o autor não escreveu a peça para falar da religião lusitana; o seu objectivo, declarado por ele numa entrevista emitida pela tsf no dia 14/10/03, era abordar o aspecto político da saga lusitana - da intriga política, dos jogos de poder nos bastidores, da posição dos povos perante os impérios.
O Dr. Freitas do Amaral, na entrevista, afirmou que os E.U.A. são comparáveis ao Império Romano, e deixou claro que a Europa pode ser amiga dos seus parentes de além-Atlântico, mas não deve ser sua subordinada. Na peça, Viriato diz que «podemos até vir a ser amigos dos Romanos, mas não queremos ser colonizados por eles».
Muito bem.
Então, se o autor quer falar de política, há na sua peça duas falhas graves. Ambas dizem respeito a palavras historicamente atribuídas a Viriato - uma das falhas, consiste numa falisificação; a outra, numa omissão.
A primeira, é referente às palavras que Viriato dirige a Astolpas no dia do casamento com a filha deste último. Na peça, o seu sogro Astolpas, oferece-lhe o usufruto de riquezas, e Viriato responde «Não precisamos dessas riquezas; eu e Tangina (mulher de Viriato, filha de Astolpas) viveremos do nosso amor.»
Ora, no registo histórico, Viriato diz algo de bem diferente, perante a riqueza do seu sogro: «Todas essas riquezas nada valem perante a minha verdadeira riqueza, que é a lança. É a minha lança que protege as tuas riquezas».
Freitas do Amaral, democrata-cristão, conservador, bom burguês, não quer que o seu herói afirme a primazia dos militares sobre os civis. E, por isso, em vez de ser fiel a um dos poucos registos históricos a respeito de Viriato, prefere atribuir ao caudilho lusitano uma sentimentalada ao bom gosto burguês: «o amor e uma cabana».
Quanto à segunda falha grave, é para mim incompreensível, pelo menos por enquanto.
Quando chegou a Ituca, cidade ibérica apanhada no meio da guerra entre a Lusitânia e Roma, Viriato contou aos habitantes uma parábola, que foi a seguinte: um homem tinha duas mulheres, uma velha e outra nova. Quando estava com a nova, esta arrancava-lhe os cabelos brancos porque não queria que ele tivesse aspecto idoso; quando estava com a mulher velha, esta arrancava-lhe os cabelos negros, porque não se sentia bem ao pé de um homem com aspecto jovem. Resultado: o homem ficou careca. Quis com isto dizer, Viriato, que Ituca tinha de se decidir entre aliar-se a Roma ou ficar ao lado dos Lusitanos - não podia continuar na posição ambígua de até então.
Não entendo como é que Freitas do Amaral, que deve ter estudado a fundo toda a gesta de Viriato, pôde ter ignorado por completo este episódio.
Então as palavras do ilustre caudilho, neste caso, não terão imenso a ver com a relação entre os povos e os grandes impérios? Ainda recentemente se pôde observar um caso destes, na Europa, a propósito da questão do Iraque: de um lado, o império americano, do outro, os resistentes à ordem yanke (França e Alemanha), e, pelo meio, os países europeus que queriam manter boas relações com ambos os lados.