quarta-feira, abril 11, 2012

ACERCA DAS SOBREVIVÊNCIAS DO CULTO DE ATÉGINA E DE ENDOVÉLICO NO FOLCLORE A RESPEITO DE MOURAS E MORTOS

(...) se a romanização a norte do Tejo foi mais lenta e difícil, com inevitáveis repercussões na manutenção de hábitos e crenças préromanas, a verdade é que a sul deste rio, apesar de uma romanização mais rápida, temos de não esquecer que, no caso do deus Endovélico, presente no Alentejo, este culto parece alicerçar-se nos tempos pré-históricos. Embora, de acordo com escavações recentes, não se tenham encontrado na colina de São Miguel da Mota vestígios anteriores aos Romanos (mas nela se construiu, em tempos medievais, uma ermida, reiterando a sua sacralidade), a verdade é que próximo dali se situa a Rocha da Mina, cujos dados arqueológicos levam o especialista M. Calado a considerar esta como o local do santuário primitivo, apresentando características de religiosidade claramente relacionadas com o culto das águas e da fertilidade, do mundo subterrâneo e dos mortos e com a deusa infernal pré-romana Atégina (que se assemelha à Prosérpina grega, rainha do mundo subterrâneo), tal como São Miguel da Mota. Por outro lado, na Rocha da Mina, «escadas e pavimentos talhados na rocha são elementos recorrentes num número relativamente elevado de santuários pré-romanos, alguns dos quais romanizados, e são interpretados como "altares de sacrifícios"»7, uma característica bem documentada das práticas religiosas indígenas. Terá sido assim um santuário rupestre muito semelhante ao de Panóias e, tal como aquela região de Trás-os-Montes, esta zona do Alentejo, rica em vestígios megalíticos, dispõe de grande número de referências etnográficas e tradicionais intimamente ligadas às mouras encantadas. E toponímicos; senão vejamos: em Pego da Moura – onde foram igualmente encontrados vestígios de um santuário numa cavidade natural –, não muito longe de São Miguel da Mota, um «rumor» diz-nos que ali viveu uma moira encantada, transformada em serpente8. Em Castelo Velho, distante 1500 metros em linha recta de São Miguel, há uma galeria subterrânea, também possível santuário primitivo, a Casa da Moura, e um outro «rumor» diz que aí vivem mouras encantadas, clara alusão à Mourama ou mundo dos mortos, a «terra da promissão». (...)
o papel do morto ou do antepassado – pertencente à esfera do sobrenatural, o mundo por excelência das divindades – continua a ser o de uma intervenção activa na vida dos seus descendentes. Tal como o teria sido em tempos mesolíticos, segundo se pressupõe do facto de, durante esse período, lhes ter sido reservada sepultura no local dos aldeamentos aparentemente destinado aos actos mais importantes da vida do grupo. Para os Romanos, diz José Mattoso, o morto não tinha «um destino próprio, totalmente independente do do corpo e da sua ligação com os vivos, nomeadamente os seus parentes» e, «[...]como uma sombra, um fantasma, ou mesmo um espírito (no sentido material do termo), pode manifestar-se aos vivos, de forma perturbadora e terrível[...] ou assegura[r] aos vivos a prosperidade e a fecundidade, protege-[l]os dos perigos e inspira[r]-lhes as suas decisões». Esta separação entre positivo e negativo parece ser agora mais nítida e terá, como veremos, um cada vez maior aprofundamento com a cristianização, transformando-se em maligno e diabólico, relacionando-se com a ideia de pecado e castigo divino, e benigno, por intersecção dos santos ou da Virgem. Pensamos, no entanto, não ser esta uma mudança radical romana, mas um sinal dos tempos e da evolução lenta e secular do modo de o homem se ver a si próprio e à natureza: com a sua crescente capacidade de intervenção directa na natureza, passa da sua pré-histórica e «profunda convicção de uma fundamental e indelével solidariedade da vida[...]»16 à convicção de que é o centro da criação, numa não menos crescente antropomorfização da própria natureza. Por isso mesmo, as mouras, embora confundindo-se inevitavelmente no mesmo significado com os manes, lares ou penates, revelam a sua maior antiguidade, representando também, talvez, os resquícios de uma visão totémica,
própria das gentes primitivas da Terra de Ofiúsa: recordemo-nos de que a sua forma de aparição preferencial é a da serpente. Por outro lado, elas serão, não os antepassados específicos de alguém individualizado, sinal de uma sociedade mais recente, já fortemente hierarquizada, mas um ser
sobrenatural, sempre sacralizante e protector de um local, símbolo identitário de toda uma comunidade.
Ao mesmo tempo, apesar de umas e outros serem identicamente o morto/ser sobrenatural de quem os vivos esperam obter protecção ou influência, no caso das primeiras, em Portugal, elas raramente são «aterrorizadoras» (os raros exemplos serão já uma contaminação da Diabolização imposta pelo cristianismo), mantendo-se benéficas, ofertantes de tesouros, numa quase sempre presente troca de favores. Martins Sarmento adianta que «nem os mouros e mouras da nossa tradição, nem os fairies (nas das irlandesas), se tornaram odiosos; muito pelo contrário, todos eles têm a devotada simpatia dos rústicos e pudera não, se bastaria uma palavra deles para os encher de riquezas».
Vimos já, nestas narrativas, a existência desse pacto nos encontros entre estes seres e os mortais na fórmula referida, não só por Garcia Quintela, mas também pelo abade de Baçal: «O feliz que a vê
deve dizer-lhe: "Mourinha, dá-me da tua riqueza e eu te darei da minha pobreza". A moura indica-lhe então a forma de a desencantar e promete dar-lhe quanta riqueza quiser, podendo mesmo ir com ela para a mourama e viverem lá felizes».
Perto de Montemor-o-Novo (Alentejo), «[...]um pastor teve de descansar e viu uma anta. Então, quando se sentou, uma porta fechou-se e o pastor só tinha ar para um dia. Algumas pessoas ouviram os gritos do pastor e tentaram tirá-lo de lá, mas não conseguiram. Então, quando o ar estava a acabar, uma linda moura, que parecia uma fada, fez a porta abrir-se. Dizem que quem vir esta moura tem uma viva muito feliz». Assim, se o pacto entre vivos e mortos ou, melhor dito, entre seres mortais e seres divinizados é recorrente no mundo romano, como afirma também Amílcar Guerra, ele será igualmente uma característica essencial que vem do passado, já presente neste corpus mítico, o que parece demonstrar ser a atitude natural e ancestral do homem, perante forças que o transcendem; estas são susceptíveis de actuar de forma positiva, produzindo o bem, ou negativa, produzindo o mal quando, e só neste caso, há incumprimento das premissas do pacto.

In Portugal, Mundo dos Mortos e das Mouras Encantadas, por Fernanda Frazão e Gabriela Morais