VIVÊNCIA DA IDENTIDADE ETNO-RELIGIOSA NA MAIOR FESTA DO OCIDENTE
É irónico, e bom sinal de saúde europeia, que, apesar dos pesados séculos de cristianização e domínio nominal judaico-cristão dado como facto adquirido e fundacional, apesar disso, dizia, a festa mais importante do Ocidente actual seja no essencial de raiz pagã, por mais que haja agora uma trupe de revisionistas cristãos a tentar compor um ramalhete de quadra com raiz cristã. O Natal é, de facto, descendente quase descaradamente directo da Saturnália, que já na antiga Roma pagã era a maior festa de Roma, considerando o poeta Catulo que a ocasião constituía «o melhor dia do ano», a Saturnália.
À frente e em cima do Natal, a Cristandade espetou-lhe com a figura do Menino Jesus. Mas até nisso a verdade veio ao de cima - de modo muito natural, foi-se impondo a imagem inocentemente folclórica do Pai Natal, o Santa Claus como lhe chamam os Americanos, coincidentemente na mesma terra donde este Santa seria originário, a Ásia Menor, foi em tempos adorado Santa ou Sanda, destacado Deus hitita. Ora o Pai Natal, formalmente originado na figura de S. Nicolau, corresponde a arquétipos divinos europeus do tempo do Paganismo: o aspecto físico, genericamente setentrional, a veste rubra, o semblante barbudo e jovial, o percurso nocturno de corrida pelos céus por sobre todas as terras... A ideia de que por esta altura existem forças sobrenaturais a percorrer as alturas durante a noite vem de há muito - quem o faz é a chamada «Hoste Furiosa», imenso e violento tropel de caçadores fantasmas, empenhados naquilo a que se chama «Caçada Selvagem», que é perseguição incansável, ora de um javali, ora de um cavalo, ora de belas virgens, ou ninfas. O mortal que visse este bando e dele troçasse, seria castigado; quem pelo contrário se Lhe juntasse, seria recompensado, eventualmente com ouro. A nível humano, parece haver correspondência desta tropa sobrenatural nas sociedades de guerreiros das quais já aqui se falou a propósito dos Caretos.
Os nomes e conceitos relativos a este mito europeu variam de etnia para etnia, mesmo de nação para nação nalguns casos:
- na Irlanda, é a Sluagh Sidhe espécie de espectros ou de fadas especialmente perigosas que tudo destroem e matam à sua passagem, e que são seguidos pelos seus Cu Sidhe (Cães das Fadas), igualmente saídos do inferno; o líder da hoste é o Deus Mannanan Mac Lir, ou, noutra variante, o lendário herói Fin Mac Cumhail, que conduz os seus Fianna;
- em Gales, trata-Se de Arawn, ou de Gwyn ap Nudd, Deus das Profundezas e da Morte, que conduz a Sua temível matilha vermelha e branca, a Cwn Annwn (Cães de Annwn ou Inferno) pelos ares desde o Outono até ao início da Primavera; noutras variantes, é o lendário Rei Artur quem conduz a caçada sobrenatural;- na Irlanda, é a Sluagh Sidhe espécie de espectros ou de fadas especialmente perigosas que tudo destroem e matam à sua passagem, e que são seguidos pelos seus Cu Sidhe (Cães das Fadas), igualmente saídos do inferno; o líder da hoste é o Deus Mannanan Mac Lir, ou, noutra variante, o lendário herói Fin Mac Cumhail, que conduz os seus Fianna;
- também na Cornualha, nação céltica, se fala a este respeito dos «cães do diabo»; noutras partes do Reino Unido, crê-se que estes cães andam em busca de almas perdidas;
- na Bretanha (nação céltica do noroeste do Estado Francês), é o lendário rei Artur quem dirige a caçada;
- em certas partes de Inglaterra, é Herla, rei que ficou demasiado tempo com as Fadas e quando voltou já tinham passado cinco séculos; outras personagens do folclore inglês que supostamente dirigem esta caçada são Herne, Old Nick, ou então o histórico Sir Francis Drake; naturalmente que a Inglaterra, sendo uma nação germânica, também teve no seu folclore a crença de que esta hoste furiosa era dirigida por Woden, Deus germânico da Sabedoria e do Combate;
- na Holanda, é, tradicionalmente, Wodan, o mesmo que Woden;
- em certas partes da Alemanha, é a Deusa Diana, ou uma certa feiticeira de nome Holda, Quem conduz esta atroadora tropa; e, claro, sucede o mesmo na Alemanha que na Inglaterra e na Holanda a respeito do mais antigo condutor desta cavalgada sobrenatural, o Seu nome é Wotan;
-no norte de França é Hallequin, espírito sobrenatural demoníaco, ou então Carlos Magno e Rolando...
A versão europeia mais conhecida, que aliás pode bem estar na origem das outras todas, é a germânica-escandinava, que vê nesta tenebrosa Hoste das Alturas os guerreiros mortos do Valhalla a correrem na esteira das Valquírias, todos conduzidos por Odin (nome escandinavo de Wodan), o terrível zargo, Deus da Sabedoria e da Morte em Combate... há até quem vislumbre o Seu sinistro semblante por debaixo do disfarce de Pai Natal, enquanto outros vêem na rubra indumentária, na longa barba, no físico avantajado e no afável temperamento do velhote natalício um eco da roupagem vermelha e da barba ruiva do brutal mas jovial Thor, Deus do Trovão, que dirige um carro puxado, não por renas, mas por bodes...
Foi-Se pois enevoando até passar a ser visto com nova forma...
Para ler algo mais sobre a possível genealogia do Pai Natal, clique aqui. Por cá, o equivalente galaico-português será talvez o Secular das Nuvens, ou Escolar das Nuvens, ou Nubeiro, na Galiza, do Qual já se falou no Gladius - I, II, III, e que se pode também ler aqui, onde há também textos centrados na figura do Nubeiro. Diz o folclore galego que o Nubeiro cobre-se de peles caprinas, o que remete aos bodes sagrados que puxam o carro de Thor... por outro lado tem sido considerado o equivalente de Odin, que, como acima se vê, dirige a Cavalgada Selvagem. Outras vezes o Nubeiro ou Secular das Nuvens é representado como uma espécie de génio da Tempestade, o que mais uma vez corresponde à figura odínica, dado que Wodan/Odin radica em Wode, Entidade da tempestade Cujo nome designa «fúria».
Pode entretanto haver nos «Caretos» um eco físico e social deste mito, pois que também estes parecem personificar entidades sobrenaturais que nesta altura do ano fazem uma espécie de «raide» fantasmagórico pelas povoações.
Não surpreende que nesta época do ano os média de entretenimento, cinema e televisão, apresentem sempre uma dose maior de filmes de fantasia do que o habitual. E este ano até calha a Lua Cheia no dia de Natal, a ajudar à festa de quem aprecie a dimensão feérica da quadra. A usual expressão «magia do Natal» não tem perdido o vigor por ser cada vez mais lugar-comum.
De resto, cambada, deixo aqui uma citação à laia de conselho para este Natal e seguintes:
“(…) Que ninguém tenha actividades públicas nem privadas durante as festas, salvo no que se refere aos jogos, às diversões e ao prazer. Apenas os cozinheiros e pasteleiros podem trabalhar. Que todos tenham igualdade de direitos, os escravos e os livres, os pobres e os ricos (…)”
Saturnália, descrição do famoso festival em honra de Saturno, por Luciano de Samósata (125-181 d.C.)ÊNC
2 Comments:
Interessante!
https://www.youtube.com/watch?v=stO2uG0A674
Não, pouco interessante. Mais um jovem «conservative» a largar bacoradas contra a revelação da origem pagã do Natal. Começa mal, dirigindo ad hominems à primeira moça focada, pretendendo ridicularizá-la pela forma e pelo rosto, o que, como argumentação, não tem ponta por onde se lhe pegue. Eu também vejo nele uma cara de peido morno e não é esse o motivo que me leva a desmentir o que ele diz. Também não vi ninguém a pretender estar a revelar nenhuma novidade, ainda que, bem entendido, muito do que é dito sobre a raiz pagã do Natal ainda seja uma novidade para muita gente.
Entretanto, apesar de «assegurar» que ela disse estupidezes, ele não corrige nenhuma delas.
Quando depois começa a «questionar» a relevância de as tradições natalícias serem de origem pagã, está a fazer-se de novas, prenhe de esperteza saloia. Ora a questão é muito simples - o Cristianismo sempre se reclamou como a única religião verdadeira e a revelação definitiva, sempre tentou destruir todas as outras religiões, mas não se fez rogado em sacar o que não conseguiu erradicar. Afinal a tal «revelação» não estava tão completa como a sua narrativa faz crer.
Quando diz que à população pagã não foi exigido que abandonasse as tradições pagãs, isso é desvergonha a mais. As tradições pagãs foram ou proibidas ou usurpadas pela Cristandade e postas ao serviço do culto do Judeu Morto. Terem um «Deus» tão perfeito e sobrenatural que afirma que o Seu reino não é deste mundo mas depois fazê-lo nascer quando nasce o Sol e morrer e ressuscitar quando os antigos cultos pagãos celebravam a morte e o renascimento da vida - Páscoa, Primavera - é historieta colada com cuspe, sobretudo porque os cristãos das origens nem sequer celebravam o nascimento de Jesus. Depois lá foram cedendo, a ver se se infiltravam no seio do povo, porque afinal a «Boa Nova» não era convincente que chegasse, foi preciso usar truques «adaptativos». Objectivamente, isso não é comportamento de quem revela «o Caminho, a Verdade e a Vida» sem o qual «ninguém chega ao Pai», mas sim de uma empresa a testar novas técnicas de marketing para conseguir o monopólio do mercado. É aceitável para uma religião pagã, que é deste mundo, mas fica mal a um credo que se afirma único e superior ao mundo.
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