POR UM NATAL MAIS VERDADEIRO
«Io Saturnália!», era o grito dos antigos foliões durante o convívio pautado pela fraternidade geral e pela opulenta abundância de vitualhas, cenário de grandes comezainas, grandes bebedeiras e, não raramente, notáveis orgias. As casas eram decoradas com grinaldas de louro e as pessoas visitavam-se entre si, trocando prendas tais como velas de cera e bonecos de barro (os «sigilaria»).
Observa-se assim que o por muitos difamado «consumismo das massas» tem raízes antigas na verdadeira Europa. Há até quem, por influência da mentalidade cristã ou neo-cristã, afirme que nesta quadra «há demasiado consumismo e pouco espírito autenticamente natalício!!!»...
Nem é só por ser gentio que gosto imenso do consumismo desta época.
Andar na rua, ao cair da tarde, e ver as lojas todas abertas, com imensa gente atafulhada em embrulhos de papel faíscante, e apreciar o fausto das iluminações natalícias, somando tudo isto ao aroma e nevoeiro das castanhas assadas, é dos maiores prazeres que se pode ter nesta vida, e faz desta época a melhor do ano, sobretudo porque no próprio lar brilha a mágica árvore de Natal, tão simples e inalteravelmente pura, presença de todos os anos, que, vinda de tempos remotos, transcende as eras, porque não precisa de morrer. Elemento festivo de raiz germânica, é símbolo de vida, de eixo do mundo, e as suas luzes representam elo ou pelo menos memória das luzes do Alto. A árvore escolhida costuma ser o pinheiro, pelo mesmo motivo que o azevinho e o visco estão também associados à quadra natalícia - porque, permanecendo verdes todo o ano, constituem símbolo de eternidade. Diz-se aqui que «no fim de cada ano os povos do norte dirigiam aos seus Deuses uma série de pedidos pendurando os objectos que consideravam mais valiosos nos pinheiros cobertos de neve. Escudos, armaduras e martelos eram os diferentes ornamentos utilizados na decoração da árvore. A luz reflectida através do metal exposto dava aos bosques um ar luminoso muito semelhante ao das árvores de natal. Mudam-se ideias e modos de vida, tanto a nível individual como colectivo, mas permanece essa referência central luminosa que vem das origens.
As comezainas e profusão de doces são também imprescindíveis, quanto mais melhor, em excesso, se preciso for, que o mesmo é dizer, se apetecer.
Estreitamente ligada à abundância, estava, em temos antigos, a fraternidade. Julgo que, no pensamento antigo, a plenitude é como um estado de excelência universal, em que tudo representa vida: fertilidade e amor estão assim intimamente interligados, dado que representam, quer uma quer outra, e sobretudo em conjunto, uma manifestação privilegiada de vitalidade.
Por seu turno, os cristãos e seus derivados - humanistas moralistas - gostam de dizer, a respeito da fraternidade escrupulosamente destituída de «consumismo», que «isto é que é o espírito natalício!», porque não há na sua visão ética do mundo um lugar para a sacralidade do luxo e da abundância.
Eu nunca gostei de fraternidades obrigatórias. Ser forçado a sentir amor ao «próximo» que eu não conheço de lado nenhum, parece-me francamente idiota e anti-natural. E, apanhar pela frente com a tentativa daqueles que querem impingir um sentimento de culpa a quem não sentir fraternidade universal, é ignomínia inquisitorial que não admito. Recordo-me ainda dos sermões geralmente dados aos putos sobre o exemplo de Jesus e o dever de ser bonzinho e amante do amor amoroso aos amados do mui amado outro lado do amado mundo, e eu, lembro-me como se fosse ontem, com vontade de sair daquele ambiente doentio e ir ver «Flash Gordon» ou «Bombardeiro X» na televisão, com mega-doses de fantasia bombástica, fulgurantes raios de morte, bordoada a rodos, cruzadores espaciais e homens-falcão a queimar cidades inteiras em raides desumanos a toda a brida... E, a propósito disto, o Natal também brilha pelo cenário de entertenimento que motiva - filmes e séries de televisão, ora alusivos ao Natal, ora relacionados, na generalidade, com o mundo feérico, sobrenatural, de fadas e duendes, e fantasias mil.
Isto é, eu é que acho que há sempre isso, porque a época é propícia, em virtude do frio, da névoa e do anoitecer precoce - vale a pena lembrar que entre os antigos Germanos esta altura do ano era perigosa porque Odin mais as suas Valquírias e os seus guerreiros fantasmas do Valhalla atroavam os céus nocturnos, em terríveis cavalgadas... Todavia, na maior parte dos anos apanho uma desilusão com a programação televisiva e com as películas que são lançadas nos cinemas. Este ano quem ficar em casa pode ser que veja o feérico «Stardust», que a TVI, julgo, vai transmitir...
Naturalmente que aprecio o ambiente de boa vontade entre todos. A cordialidade é sempre agradável.
Que, numa dada altura do ano, toda a gente se mostre sorridente e amigável, não me parece nada mau.
Discordo por isso dos moralistas humanistas - outra vez esses gajos - que julgam dar grande lição de moral ao mundo quando censuram «a hipocrisia do Natal!, porque as pessoas andam o ano inteiro a morder-se umas às outras e só nesta altura é que forjam uns sorrisos!!». Quanto a mim, a hipocrisia dos outros não me afecta, já que tenho boa memória de quem é meu amigo e de quem sou amigo.
Além do mais, se se guerreia durante todo o ano, ao menos que haja uma temporada de paz e sossego. Qual é o mal disso?
Por essa razão, dou às amabilidades e sorrisos sazonais o seu real valor: servem para criar bom ambiente. Não procuro nessas boas disposições quaisquer sinais de amor eterno. Não vou a correr perguntar-lhes se já mudaram de opinião a meu respeito e passaram a adorar-me - francamente, não é coisa que me faça abalo ao pífaro. Do mesmo modo, quando vejo as luzes de Natal, não me interessa ir olhar para os circuitos e fios do mecanismo eléctrico. A complexidade do seu funcionamento não é mais real do que o esplendor que produzem. Aliás, a complexidade do seu funcionamento existe para servir o esplendor que produzem.
Bom Natal, cambada. Se me pedissem conselho a respeito do que devessem fazer, dizia-vos que enchessem o ventre de comida e, se se sentissem mal, que vomitassem, para deixarem espaço livre na barriga quando viesse a nova fornada de alimentos doces e gordurosos. Que fossem amigos dos vossos parentes e amigos, ajudando-os a empanturrar-se do mesmo modo que vocês. E, se os vossos inimigos estivessem ainda melhor do que vocês, que não se sentissem incomodados por causa disso.
Viva-se esta quadra festiva com o seu espírito original: uma saudação à solidariedade entre o povo, à fertilidade e à abastança.
Consuma-se à grande, goze-se os prazeres da vida, que é mesmo para isso que serve o Natal.
Saturnália
2 Comments:
Fantástico post. O cheiro na rua nestes dias até parece diferente.
O cheiro e os brilhos... sobretudo os brilhos que se escondem por detrás da névoa...
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