«A HORA DE SERTÓRIO»

Sinopse:
De 80 a 72 a.C., à frente de uma confederação de povos ibéricos, Quinto Sertório enfrentou com êxito os numerosos exércitos que a "sua" Roma enviara para submeter as províncias hispanas.
A guerra de Sertório foi um episódio da longa e sangrenta agonia da República Romana, que, esgotada na sua força interior, sacrificou sistematicamente os homens que a poderiam salvar; Sertório foi provavelmente a mais ilustre das vítimas.
É essa época de crise — política, económica, mas, sobretudo, de valores — que este livro evoca, através das narrações de um filósofo grego, de um general romano e de um jovem lusitano, Medamo de seu nome.

É esta uma obra sobejamente recomendável, da autoria de João Aguiar e editada pela primeira vez em 1994, antes de mais porque divulga e de certo modo vivifica algo do cerne da identidade lusa, focando com realismo um princípio de fusão entre a cultura lusitana e a romana. O género é épico, como dificilmente poderia deixar de ser, dado o tema tratado, mas nada tem de grandiloquente, muito menos de patriótico, marcando-se pelo tom suave e corredio, ao contrário do «Viriato» de Teófilo Braga, aqui referido recentemente, contraste este que facilmente se explica ao olhar os contextos políticos, sociais e culturais em que ambos os textos foram escritos. No que aos nacionalistas diz mais particularmente respeito, é notório o contraste entre a exaltação heróica e etnicista de Teófilo Braga, por um lado, e a prosa serena e humanista de João Aguiar - num, a ostensiva diferenciação dos povos e das «raças»; noutro um simples reconhecimento de diferenças culturais e, ao de leve, um desprezo politicamente correcto por quem não gosta de estrangeiros. Em termos ideológicos, é pois mui vasto e profundo o oceano entre os dois autores contemporâneos, o que bem atesta a rapidez com que certos dogmas universalistas se impuseram...

Diferença mais evidente ainda reside no tratamento da matéria religiosa lusitana, em que a Fortuna beneficia o mais novo dos dois autores, visto ter havido desde Teófilo Braga uma vasta e muitas vezes profícua investigação, da qual Aguiar colhe os frutos com inteligência. Descreve com verosimilhança o que teria, a seu ver e com sustentação científica, o que teria sucedido no caso do culto de Endovélico, embora lhe dê um remate tendencialmente ateu que não parece em nada justificado, quando se tem em mente a fulgurante popularidade que o culto deste Deus terá tido séculos depois da época de Sertório. Igualmente boa, embora mais breve e sóbria, é a alusão a Trebaruna e Sua associação, no culto, a Bellona, mesmo que não haja provas de tal prática sincretista por parte dos Lusitanos e dos Romanos estabelecidos na Lusitânia.

Também verosímil, mas compreensiva e necessariamente especulativa, é a atribuição da famosa corça de Sertório ao âmbito cultual de Atégina.

Pessoalmente, prefiro a abordagem que o mesmo autor viria a fazer depois, quando apresentou ao público «Uma Deusa na Bruma», obra na qual se estende com brilhantismo a respeito das Divindades veneradas por Galaicos e também, em parte, por Lusitanos - Nábia, Cosus, Reve, Bandua - e que constitui uma espécie de terceira parte da «trilogia» (atenção às aspas), a coroar o ciclo literário da resistência indígena Luso-Galaica ao invasor latino: primeiro, o famoso «A Voz dos Deuses», respeitante à gesta de Viriato; depois, «A Hora de Sertório», a focar o «sucessor» de Viriato, embora fosse já romano; por «fim», «Uma Deusa na Bruma», retratanto a parte galaica da reacção hispânica à ocupação imperial romana.

Parece-me contudo haver algum exagero quanto ao destaque que Aguiar dá à homossexualidade nas duas primeiras obras, mais desprositadamente na primeira do que na segunda, creio, pois que a interpretação da «devotio ibérica» como um costume de raíz homossexual afigura-se como uma análise modernaça e algo anacrónica do que seria a real vivência das rudes gentes da Hispânia pré-romana. Na segunda obra, o autor tem a prudência de limitar a prática homossexual à parte romana das personagens.

Enfim, está ainda por nascer quem seja capaz de fazer sem mácula seja o que for. E «A Hora de Sertório» está longe de ser das coisas mais imperfeitas que por aí circulam sob as vistas de quem aprecia boa, e ligeira, literatura.