quarta-feira, outubro 08, 2014

«DEUSES AMERICANOS»

Ilustração feita por um fã, mostrando algumas das personagens

Um livro jeitoso, este. Bizarro, intrincado, do mais original que tenho lido. 
Num estilo leve, ligeiro, mas nem por isso superficial, em vez disso saltitante, o inglês Neil Gaiman tece uma vivaz tapeçaria rica de personagens, enredos e sequências, num tom que oscila entre o humor e o terror sem exageros, passando pela intriga e por algum drama, bem como alguns apontamentos de foda rija e mirabolante, alcançando ao final de contas a notável proeza que é a chamada «suspensão da descrença» - torna verosímil uma história ou imagem que pela sua natureza não se afiguraria facilmente credível. Trata-se de uma saga para adultos que tem lugar na época contemporânea e cerne num plano de Deuses antigos actualmente marginalizados a quererem retomar o Seu poder e lugar no mundo. 
Gaiman parece mover-se com um notório à vontade em tudo o que seja mitologias, nomeadamente no que respeita à mais focada nesta obra, a germânica, mais usualmente denominada como nórdica. E é natural que assim seja, sendo ele um anglo-saxão, portanto, um germânico, no essencial, a viver num mundo anglo-saxónico, tendo crescido num meio cultural em que os Deuses nórdicos se tinham tornado moda, na banda desenhada, inclusivamente em Portugal, como escreveu certa vez o artista português Vítor Peon. 
Para quem aprecie o tema, o livro é uma pérola, logo a começar pela nota introdutória do autor, em que diz que todas as personagens e enredo são ficcionais, «Só os Deuses são reais». Não se gostará porventura de tudo o que ali se lê; eu em particular não apreciei tudo tudo o que li. Achei chato, desmancha-prazeres, um anti-clímax explicativo que logo a seguir consegui afastar da mente. Por outro lado pareceu-me desapropriado dizer que um latagão ferrabrás como o Thor deu um tiro na cabeça em 1932. Mas passa. É surpreendente a lucidez nada politicamente correcta do autor quando refere em escassas linhas a história da escravatura africana - diz ele que os reinos da África Oriental foram dilacerados pelos negreiros árabes e as tribos da África Ocidental e Central pelos conflitos entre si. Gaiman não atribui nada disso aos brancos europeus, ao contrário do que faria histérica e moralisticamente qualquer típico antirra. 
Particularmente valiosa, embora deixe a desejar em termos de extensão, por saber a pouco, é a abordagem que faz àquilo que no livro se chama «bastidores» da realidade - uma dimensão superior, como que paralela, na qual se passa o que realmente mais conta. Recordou-me a alegoria da caverna, de Platão, na medida em que Mircea Eliade considerou que a mundivisão platónica, da existência de um mundo das ideias, das essências, superior, acima do mundo das formas, humano, na medida em que Eliade, dizia, fez notar que esta concepção platónica é na verdade nada mais que a versão filosófica, abstracta, intelectualizada, da mundivisão tradicional dos povos arcaicos - a crença ou constatação de que existe uma esfera de existência superior, porventura a dos Deuses, mais real e ideal do que aquela em que é dado aos homens viver. 
Saúdo, como lufada de ar fresco, a passagem em que se faz notar que demasiados dos actuais pagãos - eu é que digo «demasiados» mas no livro nem há referência a quaisquer outros - se concentram numa vivência mais ou menos mágica ou individualista, humanista, que esquece o culto politeísta propriamente dito. 
Não posso deixar de dizer que discordo da forma como fica vista uma alegada oposição entre os antigos Deuses e os «novos deuses», como se estivessem divididos em dois grandes «lados» diferentes. Na narrativa de Gaiman, os Deuses antigos vivem no quotidiano americano uma existência que vai do remediado ao enrascado. Alguns resolvem entrar num grande confronto com os chamados «modernos deuses», a saber, os que personificam a televisão, os automóveis, os caminhos de ferro, os computadores, «deuses» estes que à sua maneira também podem exigir sacrifícios humanos (e Gaiman eventualmente nem saberá como isso é verdade em Portugal, onde toda a gente tem de ter o seu carrito, e usá-lo todos os dias no caminho para o emprego, e entretanto morre gente como tordos nas estradas do país). A mim há muito me parece que não há qualquer oposição ou contradição entre as Divindades tradicionais e a mais desenvolvida tecnologia dos tempos que correm. Pois se no mundo antigo as Deidades revelaram elementos civilizacionais, além de serem padroeiras de tudo o que fosse tecnologia, porque Se posicionariam agora contra os mais apurados frutos da evolução tecnológica multi-milenar? Nada de sólido o poderia justificar, muito menos qualquer tipo de inveja. Vive-se na chamada «sociedade da comunicação», dominada pela televisão, pelas legiões intermináveis de telemóveis, pelas toneladas diárias de informação e pela cada vez mais omnipresente Internet. Esta sociedade, mundialmente dominante,  é liderada, ainda, pelos Anglo-Saxónicos ou seus derivados - a maior super-potência foi fundada por Ingleses, a língua franca a nível mundial é o Inglês. Ora o Deus maior dos antigos Germânicos, Anglos e Saxões incluídos, é Odin, Wotan, Deus dos Caminhos, Viajante, comunicador também. Uma coincidência curiosa, no mínimo. O dia da semana que Lhe consagraram é  a quarta-feira, isto é, em Inglês, Wednesday (Wedne, Wuoden + day), que, no livro, é o nome mais utilizado para designar o Deus mais interventivo deste moderno conto, numa luta que não é assim tão séria como parece, mas que não deixa de se afigurar como uma oposição que é, a meu ver, muito ilusória mas que, bem sei, alguns alimentam ainda.



3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Eu tambem não aceito:



Europeus não aceitam propaganda antirrussa de meios de comunicação
Leia mais: http://portuguese.ruvr.ru/news/2014_10_09/Europeus-n-o-aceitam-propaganda-antirrussa-de-meios-de-comunica-o-4706/

9 de outubro de 2014 às 17:48:00 WEST  
Anonymous Anónimo said...

"E é natural que assim seja, sendo ele um anglo-saxão, portanto, um germânico, no essencial, a viver num mundo anglo-saxónico"

O Neil Gaiman é filho de judeus polacos mesmo (não que haja algum problema, é só uma questão de rigor).

Cumprimentos

10 de outubro de 2014 às 21:31:00 WEST  
Blogger Caturo said...

Pois, está bem, mas foi educado numa sociedade anglo-saxónica, pronto, a referência dele é essa.

Cumprimentos e agradecimentos.

10 de outubro de 2014 às 22:52:00 WEST  

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