quarta-feira, abril 16, 2008

«MIST - NEVOEIRO MISTERIOSO»

Fui ver, já há não sei quanto tempo, o filme «Mist - Nevoeiro Misterioso», baseado na obra homónima de Stephen King. É uma história de terror, pejada de monstruosidades ficcionais, que acaba por ser ponte para abordar as monstruosidades reais alcandoradas na psique humana.
O ambiente ao longo de toda a película é poderoso e tão realista quanto possível, clima de expectativa e medo como vai sendo raro encontrar na filmografia contemporânea, sem recorrer demasiado ao susto barato do grito lancinante e súbito ou da aparição repentina dum qualquer asqueroso estafermo. Pareceu-me até ouvir menos gente a falar durante a exibição desta película do que doutras, tão forte era o apego da plateia à acção e ao ecrã... se todos os filmes fossem assim, talvez não fosse preciso gramar tantos comentários e ruídos ininteligíveis da saloiada que quando vai ao cinema pensa que está em casa e não sabe calar-se.

A abundância de criaturas repelentes e mortalmente ameaçadoras enquadra a história num estilo perfeitamente americano e consentâneo com a moda dos últimos tempos cinematográficos, em que os monstros do género de horror apresentam um aspecto mais ou menos insectóide, ou de algum modo viscoso e rastejante, como se pode ver em clássicos bem conhecidos, entre os quais «A Mosca», «Aliens», «Soldados do Universo», «Projecto Cloverfield», etc..

A propósito disto, lembro-me de há uns anos ter lido que, em matéria de histórias de terror, os Ingleses apreciam contos de fantasmas ao passo que os Ianques preferem os de monstros. Em tempos recentes, o contraste entre a película «Os Outros», tipicamente britânico (céltico, também, com o tema da passagem ténue entre este mundo e o Outro), e, por exemplo, «Aliens», é exemplificativo.
Talvez esta diferença entre as duas margens atlânticas do mundo anglo-saxónico possa ser explicada à luz da distância cultural entre ambos os povos. Enquanto os Ingleses se identificam mais com o fantasmagórico porque o fantasma é o passado e um povo apegado à sua longa História, como o da vetusta Albion, vive com alguma profundidade o aspecto dúbio, ora fascinante ora terrível, ora os dois ao mesmo tempo, que o passado pode ter na psique humana, os Ianques, por seu turno, sentem-se mais impressionados pelos monstros, porque o monstro é a forma repelente do ser, tal como o pecado é o aspecto mau do homem, e o povo do Tio Sam afigura-se especialmente puritano e preocupado com questões de moral. Desconheço se é por isso que a produção cinematográfica norte-americana fala com mais frequência do género «horror» do que do «terror», mas pode ser que tenha ver com isso.

Ora «Mist - Nevoeiro Misterioso» insere-se perfeitamente neste contexto. Uma vila ou pequena cidade norte-americana fica repentinamente envolta em denso nevoeiro, no seio do qual abundam seres doutro mundo violentamente mortais. Isto do nevoeiro que alberga presenças sobrenaturais doutro mundo até tem um aspecto bastante céltico, britânico também, e pode-se dar livre curso à imaginação sobre o que a partir daqui se poderia encontrar no meio de tão feérica névoa, mas, efectivamente, o filme é mesmo americano, pelo que os citados seres doutro mundo são simplesmente insectos e outros asquerosos animais em ponto grande e imensamente perigosos. Dito assim, parece pobrezinho, mas o que mais interessa na obra não é o seu aspecto sobrenatural ou de ficção científica e sim aquilo que é despoletado nas pessoas perante o dantesco terror com que são confrontadas. Basicamente, o tema fulcral é o dos extremos de canalhice, cobardia e fanatismo a que o homem pode chegar em situações de caos. Cá está, parece-me, um ou o motivo da tal apetência ianque pelos monstros, pois que esta espécie de seres ficcionais permite espelhar ou lembrar os males interiores, que é preciso exorcizar ou castigar. Neste caso, a pergunta poderá ser, por exemplo, «quais os monstros mais perigosos, os do meio do nevoeiro ou os que estão cá dentro?» Parecerá um lugar-comum a muita gente, mas não deixa de ter acuidade.
O filme, senão o livro, parece por outro lado ser obra de alguém que pertence à América urbana, progressista, racional, visto que as personagens mais nobres da história se enquadram neste meio ou dele são oriundas, ao passo que quem aqui fica mais mal visto são os representantes da outra América, a chamada «América profunda», aquela que, segundo o intelectualame de serviço, «vota Bush», a América do fanatismo religioso, inspirada e regida pela leitura literal, puritana, repressora e apocalíptica da Bíblia.

Pode até dizer-se que há aqui uma declaraçãozita de ódio a essa «América profunda», quase uma incitação à violência, como se dar um estalo nas trombas dum beato fosse um feito heróico ou pelo menos uma reacção um pouco excessiva mas perfeitamente humana e que atrai simpatia. Para ajudar à demonização, há até um momento em que precisamente o único elemento cobarde e rasca que por vicissitudes várias estava no grupo dos «bons» passa para o grupo dos sitiados mais aterrorizados e por isso mesmo facilmente fanatizados pelas prédicas fundamentalistas duma beata solitária, numa versão mais ou menos apressada da ideia ateia ou agnóstica de que os mais religiosos são também os mais fracos de espírito... os «bons», racionalistas atemorizados mas auto-controlados, preferem até enfrentar o oceano de monstruosidades cujo fim desconhecem do que ficar na companhia dos seus semelhantes beatizados.

O final é de autêntica tragédia grega. Previsível, pelo menos nos minutos que o antecedem, mas nem por isso menos violento. O lado bom da coisa é que até pode funcionar como lição contra a cedência ao desespero, digo eu.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Nem mais! A personagem da velha beata é fundamental no desenrolar do filme, tem claramente o intuito de mostrar às pessoas que o fanatismo religioso é ridículo.

Espero que faças mais críticas a filmes, foi um prazer ler esta.

Saudações!

16 de abril de 2008 às 19:57:00 WEST  

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