CORRUPÇÃO, AMIZADE E VALORES ABSTRACTOS
Há anos que vejo e oiço, e leio, por toda a parte, furibundos protestos e/ou «bocas» populares contra a corrupção, praticamente sempre em tom justiceiro e moralista de quem vitupera uma monstruosidade, pérfida maldade «lá deles!», dos «políticos!!!!»
Escapa porventura à maior parte dos vituperadores que a corrupção é-lhes se calhar mais próxima e mais familiar do que julgam. Quem corrompe e é corrompido não é nenhum demónio de algum abismo cósmico – é gente como eles, da mesma sociedade, do mesmo sangue… gente cujo comportamento é ditado, não necessariamente por uma tantas vezes criticada «ausência de valores», mas porque os seus valores são «errados», e quando digo que são «errados», não me refiro aos do egoísmo, do consumo, nem nada dessa laracha baratucha, mas sim a alguns dos mais «sagrados» e insuspeitos ideais…
Numa época em que está tanto na moda «a Amizade!» como valor cardinal, e que, por outro lado, há um desprezo implícito, muitas vezes explícito, pelo Estado e pelas instituições, bem como uma alegada repulsa, orgulhosamente proclamada, contra as massas populares, contra os «rebanhos», além de uma indiferença de princípio pelos valores abstratos em si, como a Honestidade sem qualquer rosto humano, pois num cenário destes, é só seguir a lógica mais elementar para perceber a inexorabilidade da corrupção generalizada. Quando se acha que «o que se leva desta vida são os bons momentos com os amigos», e que o Estado é um gigante estúpido que só serve para nos sacar impostos e para ser enganado, e que as pessoas da população que não conhecemos de lado nenhum são como gado ovino, bovino e caprino, evidentemente que se está disposto a passar por cima de todos os regulamentos de maneira a dar o mais que se puder a um bom companheiro. Quem, ocupando um cargo de poder, põe os seus amigalhaços acima de tudo e sente nojo pela «carneirada» e pelo Estado, vai, mui logicamente, dar prioridade a um dos ditos amigalhaços, borrifando-se de alto para as regras que são feitas por e para «carneiros» - e isto é, objectivamente, corrupção. O corrupto não é um monstro de sete cabeças vindo doutra dimensão – é, muito possivelmente, um porreiraço, porventura de sorriso genuinamente bondoso com aperto de mão franco e firme, que não esquece as suas dívidas morais e os seus deveres para com os seus compadres.
Esquema simples:
Amizade-acima-de-tudo (Filolatria)
+
Desprezo-pelo-Estado (Misopoliteia)
+
Repulsa-pela-maralha (Demofobia)
=
Corrupção
Se fulano tem posição elevada na hierarquia de algum ministério, por exemplo, e nesse ministério é aberto um concurso, e um sicrano seu amigo lhe pede um lugarzito, e o fulano responde «Eh pá, não posso, isso não seria justo», pois o sicrano vai pensar apenas uma de duas coisas, ou este gajo é ingénuo, até autista, tem lá os seus valores totalmente afastados da realidade, ou então tem mas é outro amigo que quer pôr no dito lugar e vem agora com uma desculpa da treta; se, em vez disso, fulano disser a sicrano «Oh pá, desculpa lá, mas não posso, os meus colegas já me andam a contar os passos, lá dentro desconfiam de mim, não posso mesmo, senão lixam-me…», ora o sicrano esta desculpa aceita, porque é uma justificação que ele pode compreender, com a qual ele se pode identificar, porque é conversa de gajo normal…
Serve este exemplo para ilustrar mais um facto sobre a questão da corrupção – a necessidade da denúncia. Este é outro tabu do mundo em que se vive: a condenação universal, veemente e obrigatória dos «chibos». Ora, pelo acima exposto, fica bem à vista que a única possibilidade prática actual de combater a corrupção é precisa e rigorosamente a chibaria, meus amigos… A delação é pois o mal menor, é até o mal necessário, porque, quando a «cena» mete amizades, não há valores abstratos e gerais que valham ao País.
1 Comments:
Bom texto.
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