SOBRE UM SACRIFÍCIO ALEGADAMENTE INDÍGENA A MINERVA E MARTE SEGUNDO A «MONARQUIA LUSITANA» DO SÉCULO XVI
(...) «Os costumes, & modo de viver destes Gregos, conservado desde sua entrada em Portugal, até ao tempo dos Romanos, era (como focámos acima e o conta Estrabão) conforme ao de Esparta. Grandes homens de atentar por agouros, & adivinhar o porvir, dentro nas entranhas dos animais, que sacrificavam. Os seus ídolos particulares, & de maior devoção, eram Marte, Advogado das Guerras, & Minerva, Deusa da Eloquência, & a Estes costumavam oferecer as mãos direitas dos inimigos, que prendiam nas batalhas, e que sacrificavam também, quando determinavam continuar a guerra muito tempo, para dos sinais que vissem dentro dos seus corpos, coligirem se seriam vencedores, se vencidos. Nos convites, nenhum manjar tinham por mais prezado, que carne de bode, & como coisa ilustre a sacrificavam a Marte, & neles davam sempre o primeiro lugar aos mais antigos.» (...)
In «Monarquia Lusitana», Livro Primeiro, Capítulo III, obra iniciada por Frei Bernardo de Brito em 1597.
Tirando a atribuição de uma identidade helénica aos Lusitanos, que não interessa aqui salientar, é particularmente curioso que Bernardo de Brito refira dois teónimos a propósito do sacrifício da mão direita dos inimigos aos Deuses. Nesta narrativa, Brito recorda apenas, como autor, o grego Estrabão («Geografia»), mas, curiosamente, Estrabão não menciona nomes de Deuses quando refere o dito sacrifício da mão direita dos inimigos - diz apenas que os Lusitanos a oferecem «aos Deuses»; mais à frente, Estrabão menciona Ares, Deus da Guerra, como o Deus ao Qual os Lusitanos sacrificam um bode; antes disso, repita-se, não apresenta nenhum teónimo.
Antes de continuar, urge informar que, entre os Antigos Gregos e Romanos, vigorava o hábito da «Interpretatio Greca/Romana» quando descreviam os cultos de Povos estrangeiros, querendo isto dizer que os cronistas clássicos aplicavam os nomes gregos/romanos aos Deuses desses Povos bárbaros, como forma de explicarem aos seus leitores - que eram, tal como eles próprios, Gregos/Romanos - a natureza das Divindades das Quais estavam a falar. Seria como dizer a um português que estivesse a ver Edith Piaf pela primeira vez na televisão, «olha, esta era a Amália dos Franceses», embora a diferença entre ambas seja inequívoca em todos os sentidos...
Por conseguinte, sendo Estrabão um grego, chama «Ares» ao Deus da Guerra dos Lusitanos, pois que Ares é, na Grécia, o Deus da Guerra, e Estrabão ou ignora ou não quer dizer o nome lusitano do Deus Lusitano da Guerra; Brito, por seu turno, sendo latino, chama «Marte» ao mesmo Deus, pois que Marte é o Deus da Guerra latino.
Qual o nome, ou nomes, do(s) Deus(es) da Guerra lusitano(s)? Bandia, Netus, Cosus, Arantio, Arus (teónimo parecido com o do helénico Ares, talvez só por coincidência), outro(s)?... Não sabemos, só suspeitamos, mas voltemos ao sacrifício...
Retornando ao que Estrabão diz na sua obra a respeito do sacrifício ritual das mãos direitas dos inimigos, pois o autor diz apenas que estas mãos eram sacrificadas «aos Deuses» sem qualquer outra especificação. É depois Brito quem particulariza - diz que as mãos direitas dos inimigos são oferecidas em sacrifício a Marte e a Minerva. Com que base o faz?
Ao longo da «Monarquia Lusitana», Brito cita diversas vezes um outro autor, Pedro Aládio, que, na sua alegada obra intitulada «De Sacrificiis Antiquis Lusitanorum», ou «Sobre os Antigos Sacrifícios Lusitanos», teria deixado descrições de rituais praticados na antiga Lusitânia (nomeadamente um em honra de Endovélico). Neste caso do ritual da mão, todavia, Brito não refere Aládio em momento algum. Não é, de qualquer modo, impossível que Brito tenha lido em Aládio esta informação sobre a dedicação da mão a Marte. Há, entretanto, dúvidas sobre a existência quer de Pedro Aládio, quer deste livro. Seja como for, ou por conhecimento de Brito ou por sua invenção mas excepcional coincidência, a dedicação da mão direita do inimigo ao Deus da Guerra corresponde a uma teoria (minha?) sobre a disseminação continental arcaica desta relação ritual. Como já aqui cogitei, há notórias coincidências mítico-rituais a este respeito em diversas culturas indo-europeias arcaicas: na antiga Cítia (região do Sul da Rússia e do leste da Ucrânia), oferecia-se o braço direito dos inimigos vencidos ao Deus da Guerra; na Lusitânia, oferecia-se a mão direita dos inimigos vencidos «aos Deuses»; na Irlanda, uma das principais Deidades, Nuada, Deus bélico, perde a/o mão/braço direita/o em combate, passando depois a ter um/a braço/mão de prata, daí que o Seu epíteto seja Airgedlam, em que «Airged» é «prata» e «lam» é traduzível ou como «mão» ou como «braço». Mais a norte, na Escandinávia, Tyr, usualmente tido como Deus da Guerra - a terça-feira tem o Seu nome em todas as línguas germânicas, como é disso exemplo o inglês «Tuesday» e o norueguês e dinamarquês «Tirsdag»; deriva isto de em Latim o nome do dia da semana ser «Dies Martis» ou «Dia de Marte» - pois Tyr oferece a mão direita à boca de um lobo.
Por inspiradora coincidência, a indústria militar portuguesa durante a maior parte do século XX situava-se no bairro de Braço de Prata, em Lisboa, cidade miticamente fundada por Ulisses, auxiliado por Minerva, que também teria um templo nesta arcaica urbe e que também é referida por Frei Bernardo de Brito como recebendo o sacrifício da mão direita... qual seria o nome da Minerva lusitana? Trebaruna, Trebopala? É mais um mistério por desvendar, escasseando, infelizmente, as fontes para o fazer.
2 Comments:
Essa passagem não se encontra em «Monarquia Lusitana», Livro Segundo, Capítulo III.
Sim, é do Livro Primeiro. Obrigado.
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