terça-feira, julho 26, 2016

SOBRE O SOFRIMENTO DO TOIRO NA TOURADA

A dor e o sofrimento são características biológicas em animais que evoluíram ao longo de centenas de milhões de anos e estão presentes em praticamente todo o reino animal através do processo de selecção natural. Isto porque a dor e o sofrimento têm um papel fundamental na sobrevivência dos animais ao informá-los sobre o que devem evitar. A dor, em particular, avisa o animal que tem de evitar estímulos específicos (ex. fogo). Para este efeito, o animal tem receptores de dor e uma memória que o ajudam a recordar o que causou a dor. 
O sofrimento tem a mesma função, mas em vez de informar o animal sobre um estímulo a evitar, informa sobre uma situação a evitar. A ciência comprova que todos os mamíferos possuem capacidade de sentir dor e sofrimento.
A International Association for the Study of Pain definiu dor nos animais como “uma experiência sensorial de aversão causada por uma lesão tecidual real ou potencial que provoca reacções motoras e vegetativas de protecção, ocasionando uma aprendizagem de um comportamento de esquiva, podendo modificar o comportamento específico da espécie, incluindo o comportamento social”. Em geral, salvo se for provado o contrário, pode-se concluir que os mesmos procedimentos que causam dor em humanos também causam dor em animais.
Em 1985, um relatório de bem-estar animal chamado Brambell Report afirma que: “ainda que seja justificável pensar que há diferenças entre o sofrimento humano e animal é também justificável pensar que os animais têm a mesma capacidade de sentir dor que os humanos”. O próprio Darwin, em 1871, escreveu que embora grandes, as diferenças entre o homem e os restantes animais é uma diferença quantitativa e não qualitativa. Biologicamente seria impossível ser de outra forma, visto que o gasto energético de ter uma codificação genética para cada comportamento seria muito mais dispendioso do que possuir um cérebro apto a adaptar os comportamentos às necessidades. O que está implícito nesta afirmação é que não é apenas o mecanismo da dor que é similar mas também o stresse associado à mesma. A dor não causa só sofrimento físico mas também mental.
O touro é um animal senciente e como tal capaz de sentir dor. Importa referir que, até hoje, não existe nenhum estudo, idóneo e cientificamente comprovado, que prove o contrário – que o touro não sente dor ou que goza momentos de imunidade à mesma. A dor é um mecanismo extraordinariamente importante para a sobrevivência de qualquer animal. Se um animal não sentir dor, não evitará o perigo. A selecção genética destes bovinos não os tornou imunes à dor simplesmente porque tal não seria sequer possível.
O stresse pode ser definido como um estímulo ambiental sobre um indivíduo que sobrecarrega os seus sistemas de controlo e reduz a sua adaptação, ou parece ter potencial para tanto. Considerando-se que o bem-estar se refere a uma gama de estados de um animal, sempre que existe stresse o bem-estar torna-se pobre. O simples facto de retirar um animal do seu meio natural constitui um factor de stresse de etiologia multifactorial. A lide, por sua vez, constitui para o touro uma situação completamente nova envolvendo estímulos visuais, auditivos, dolorosos e outros associados ao exercício a que o animal é submetido. Acredita-se assim, que os agentes causadores de stresse que actuam antes da lide têm reflexos importantes no desempenho do touro durante a lide. Pode dizer-se que o enjaulamento, o transporte, o desembarque nos curros e, finalmente, a lide, constituem estados de stresse sucessivo para o touro.
Pelo facto de o transporte estar associado a uma série de estímulos físicos e ambientais, alguns deles novos e adversos, este é considerado uma causa comum de stresse. Pela sua natureza, o transporte de um animal é sempre um evento não familiar e ameaçador na vida deste.
Um estudo comparou o bem-estar animal entre vitelos transportados ao matadouro para abate e vitelos que foram abatidos na própria exploração, para determinar de que forma é que o transporte os afectava. Observou-se que, efectivamente, o transporte constitui um evento indutor de stresse nos animais. Os vitelos transportados para o matadouro apresentavam níveis mais elevados de creatina-quinase comparativamente com animais não submetidos a transporte. A creatina-quinase é uma enzima específica dos músculos, cujos níveis altos indicam trauma muscular devido a lesão ou excesso de exercício físico. Esta observação está em sintonia com o facto de os animais transportados para o matadouro aparecerem com mais lesões do que os animais abatidos na exploração. Também se observou um aumento na frequência cardíaca (durante o transporte e estadia na abegoaria), e um aumento significativo dos níveis de cortisol plasmático após o transporte, indicando que estes eventos são particularmente stressantes para os animais. Foi também documentado que o transporte é responsável tanto por stresse físico (cansando os animais, submetendo-os a temperaturas não adequadas e expondo-os ao risco de traumatismos), como por stresse psicológico (na manipulação, contenção e condução dos animais, sujeitando-os a ambientes desconhecidos).
As manobras a que o touro é submetido no trajecto do campo até à arena provocam um stresse emocional que se traduz pela libertação de adrenalina. De acordo com trabalhos de investigação os touros apresentam, antes e durante a lide, uma depleção de glicogénio (substrato energético) na ordem dos 75%. O metabolismo energético deste tipo de animais proporciona muito pouca glucose em relação ao que se supõe necessário para que um organismo aguente uma lide comum. A produção e a selecção evoluíram a velocidades distintas e, por isso, encontramo-nos frente a um animal algo desequilibrado.
A embolação é um dos procedimentos de maneio que mais stresse causa aos animais, pela imobilização e manipulação forçadas. Num estudo sobre o desempenho dos touros de lide, 2 dos 65 animais usados morreram antes da lide. Os animais morreram, após a embolação, dentro do veículo de transporte já que a praça não possuía curros. De resto tal como constatado por um médico veterinário e delegado tauromáquico: “acho que a embolação é o momento de maior stresse para um touro. Isto e o cortar das hastes. Tenho visto touros a saírem tontos.”
À medida que decorre a lide a visão do touro vai-se debilitando pois o estado de stresse e de lacrimejamento produzidos durante a prova intervém no sentido de provocar uma visão menos nítida ao animal. Em stresse, produz-se um estado de simpaticotonia que se acompanha de midríase, com provável defeito de acomodação pupilar, que diminui a capacidade de visão ao perto.
A somar a todas estas experiências, extremamente negativas em termos do bem-estar do animal, há a considerar a dor provocada pelas lesões dos tecidos em virtude da sua perfuração pelas bandarilhas. Os sinais de sofrimento do touro durante a lide estão devidamente documentados e incluem, entre outros, a abertura da boca e a queda dos animais. Não obstante a polémica em torno dos factores que levam à queda dos touros durante a lide é consensual que a mesma apenas se manifesta debaixo dos efeitos do stresse da lide.
O medo é um factor de stresse muito forte. Os bovinos treinados e acostumados a uma manga, por exemplo, podem estar bastante calmos, enquanto que os bovinos não acostumados a essa manipulação podem-se apresentar muito medrosos e, portanto, experimentar um alto nível de stresse. A manga é percebida como neutra e não constitui uma ameaça para um animal enquanto que para outro animal, a novidade pode provocar medo intenso. A novidade é um forte stressor quando um animal é subitamente confrontado com ele. A expressão “fuga ou luta” normalmente utilizada para caracterizar o comportamento animal perante uma agressão, reflecte exactamente essa variação – alguns animais reagem activamente atacando a fonte da agressão, enquanto outros reagem fugindo desta.
O comportamento de luta foi seleccionado e apurado ao longo dos anos na raça brava, mas é um enorme erro considerá-lo como sinal de ausência de dor. As principais causas de agressão em bovinos são os movimentos bruscos, a novidade, a impossibilidade de fuga e um maneio violento.
As arenas são de facto “arenas” (ou “círculos”) para que o touro não possa encontrar um canto que lhe permita proteger-se dos ataques e são circulares para que, depois de algumas voltas, o animal não consiga identificar e voltar ao local por onde entrou. Tendo em conta este design, sem pontos de fuga, a resposta mais comum do touro não é tentar escapar, mas sim tentar remover o atacante com os seus cornos. Este é um comportamento que pode ser visto em muitos herbívoros quando estão a ser atacados por predadores naturais ou pessoas. Contudo, por vezes assiste-se a tentativas de fuga quando o touro tenta trepar as traves da praça.
As investidas do touro não devem ser interpretadas como um ataque, mas como uma forma de eliminar os atacantes (a defesa) para evitar uma situação adversa. Consequentemente, o ataque de touros numa praça é por si só um claro indicador comportamental de sofrimento.
O stresse e exaustão são uma causa de sofrimento. O esgotamento deve-se ao exercício físico e à perda de sangue causado pelas bandarilhas. O touro tem muita dificuldade em curvar, devido à anatomia das suas vértebras dorsais, e obrigá-lo a executar este movimento contribui para a sua exaustão. Contudo, o esgotamento do animal é essencial para permitir a actuação de alguns dos intervenientes no espectáculo.
No fim da lide, as bandarilhas são arrancadas, causando mais dilaceração dos músculos, e a dor do animal pode ser avaliada pelas suas vocalizações e agitação intensas. Alguns autores consideram que a vocalização é um importante sinal de stresse. Sob condições experimentais envolvendo a dor ou o isolamento social, a resposta vocal é útil como um indicador de bem-estar e um indicador útil de funcionamento fisiológico e psicológico. Estes autores consideram as respostas vocais como sendo potencialmente uma fonte mais reveladora de informações sobre a experiência de um animal do que outras medidas commumente empregadas como indicadores de dor ou sofrimento. Esta conclusão resulta de estudos com bovinos durante a marcação a ferro quente.
Os touros de lide percorrem grandes viagens após as corridas, enjaulados, sem espaço para se deitarem durante o trajecto, a libertarem calor resultante do esforço físico recente, até chegarem ao matadouro para abate. Uma vez que as corridas de touros ocorrem maioritariamente durante o Verão, com temperaturas muito elevadas, alguns animais chegam mortos ao matadouro.
O Capítulo I, do Anexo I, do Regulamento (CE) nº1/2005 do Conselho de 22 de Dezembro de 2004, que estabelece as normas técnicas relativas à aptidão para o transporte estabelece que os animais feridos ou que apresentem problemas fisiológicos ou patologias não podem ser considerados aptos a serem transportados, nomeadamente, se apresentarem uma ferida aberta grave, sendo que as feridas abertas e profundas decorrem da natureza do próprio espectáculo. Segundo o documento explicativo da Direcção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), na secção referente aos touros de lide, são aplicáveis as normas de aptidão para o transporte previstas no regulamento. A prática do transporte de animais não aptos constitui uma contra-ordenação, conforme previsto na n), do Art.º 14º, do Cap. V, do Decreto-lei nº 265/07, de 24 de Julho.
O Regulamento (CE) nº 1099/2009 do Conselho de 24 de Setembro de 2009, relativo à protecção dos animais no momento da occisão, define como “occisão de emergência”, a occisão de animais que se encontrem feridos ou apresentem uma doença associada a grande sofrimento ou dor e quando não houver outra possibilidade prática de aliviar tal dor ou sofrimento. A protecção dos animais no momento do abate ou occisão, é contemplada pela legislação nacional através do Decreto-Lei n.º 28/96, de 02 de Abril  e através do Regulamento (CE) n.º 1099/2009 do Conselho, de 24 de Setembro. De acordo com o artigo 12º do Decreto-Lei nº 28/96 os animais feridos ou doentes devem ser abatidos ou mortos in loco. transporte de touros de lide para o matadouro viola claramente este regulamento bem como o relativo à protecção dos animais durante o transporte pelo que este tipo de espectáculo assenta, também, em sucessivos incumprimentos da legislação nacional e comunitária.
A DGAV, enquanto autoridade sanitária veterinária nacional, tem o dever de fiscalizar todas as matérias referentes à sanidade e bem-estar animal. A DGAV é um Serviço Central da Administração Directa do Estado dotado de Autonomia Administrativa. A Lei Orgânica da DGAV foi aprovada pelo Decreto Regulamentar n.º 31/2012, de 13 de Março. A DGAV tem por missão a definição, execução e avaliação das políticas de segurança alimentar, de protecção, de sanidade animal, protecção vegetal e fitossanidade, sendo investida nas funções de autoridade sanitária veterinária e fitossanitária nacional e de autoridade responsável pela gestão do sistema de segurança alimentar.
O Despacho n.º 25680/2002 (2.ª Série), de 3 de Dezembro (MADRP) criou o Sistema Integrado de Protecção Animal, designado por SIPA, sob coordenação da Direcção Geral de Veterinária, responsável por assegurar a execução de todas as acções de controlo das normas aplicáveis à protecção e ao bem-estar dos animais.
Essas acções de controlo estão previstas para todos os espectáculos que envolvam animais excepto no caso das actividades tauromáquicas.
No caso das praças amovíveis, e dado que o licenciamento destas depende das câmaras municipais, esta acções deveriam ser asseguradas pelo Médico Veterinário Municipal (MVM) enquanto autoridade sanitária veterinária concelhia. À semelhança do que acontece com os outros espectáculos envolvendo animais, nomeadamente os circenses, o MVM deveria elaborar relatório para a DGAV.
A fiscalização das actividades tauromáquicas não deveria ser exclusiva da Inspecção Geral das Actividades Culturais. Nas matérias respeitantes ao bem-estar dos animais envolvidos em tais axctividades, a fiscalização e a tramitação dos respectivos processos por contra-ordenação deveria caber à DGAV.
Em conclusão, ainda que a maior parte dos países desenvolvidos tenham fortes preocupações acerca da nossa obrigação moral de controlar a dor nos animais, estamos ainda longe de a implementar devido a questões culturais, práticas e económicas. Isto irá mudar e teremos de usar a ciência para nos guiar num caminho mais adequado. Reconhecer a sensibilidade animal certamente não é tudo. Ter consciência da existência das necessidades e aspirações de todos os seres sencientes não nos diz o que fazer. Mas podemos orientar a nossa actuação pela, tão óbvia e simples, premissa: todos os seres sencientes têm interesse em evitar a dor e o sofrimento e em sentir prazer ou felicidade.

Por Dra. Alexandra Pereira, Médica Veterinária.

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Fonte: http://basta.pt/do-sofrimento-dos-touros-nas-touradas/ 
Página do texto original contém notas de rodapé que remetem para estudos científicos.