terça-feira, maio 26, 2015

SOBRE O CASO DO LIVRO ESCOLAR COM UM EXEMPLO DE VIOLÊNCIA CONTRA UM ANIMAL

Agradecimentos a quem aqui trouxe esta notícia: http://expresso.sapo.pt/sociedade/2015-05-22-O-Diogo-atirou-o-gato-da-varanda.-E-so-mais-um-exercicio-de-Fisica-ou-um-caso-infeliz-- (artigo originariamente redigido sob o acordo ortográfico de 1990 mas corrigido aqui à luz da ortografia portuguesa)
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O Diogo e o gato fazem parte de um enunciado que estava num livro de exercícios destinado a alunos do 9º ano. Trata-se apenas de "um exemplo infeliz" de quem o escreveu? Ou pode ter uma influência, consciente ou não, na atitude dos jovens perante os animais?  Dois psicólogos evidenciam ao Expresso visões distintas.
«O Diogo largou um gato na varanda do seu quarto, situada a 5 metros do solo." Era este o início do enunciado de um exercício de Físico-Química de um livro escolar da Areal Editores, destinado aos alunos do 9º ano de escolaridade (com idades próximas dos 14 anos). Nele, pedia-se para representar a "força aplicada ao gato durante a queda", "a energia cinética" e "potencial" e o "valor da velocidade" com que o gato chega à "posição B".  
O exercício gerou polémica, dentro e fora das redes sociais, de tal forma que a editora pediu esta quinta-feira desculpa pela "infelicidade" do exemplo, na sua página de Facebook - acrescentando que este "não constará na versão que será disponibilizada aos alunos" (uma vez que a comercialização do livro estava prevista apenas para Agosto).  
Um exercício deste tipo pode ter influência em atitudes e acções futuras por parte dos alunos que o tentam resolver ou os estudantes centram-se exclusivamente na resolução da pergunta? A resposta não é tão simples como parece ser e nem os dois psicólogos contactados pelo Expresso concordam na influência que perguntas deste género podem ter no comportamento dos alunos.   

Paulo Jesus, da Universidade de Lisboa, sublinha que o essencial neste caso "é uma questão ética", ou seja, "o facto de um livro pedagógico não ter consciência ética nos seus conteúdos". O psicólogo refere ainda que, ainda que os autores não o façam de má-fé, existe neste caso uma espécie de "laxismo ético", que assenta na "objectificação do animal". 
"Certamente, os autores do manual consideraram que um adolescente é capaz de se distanciar em relação ao conteúdo - e, em parte, existe essa capacidade, mas ainda é vulnerável", explica Paulo Jesus. "A relação entre os adolescentes e os animais está longe de estar configurada nestas idades." Para reforçar o seu ponto de vista, o psicólogo dá o exemplo do bullying: "Se os adolescentes são susceptíveis de mimetizarem actos de bullying contra colegas, contra os animais será ainda mais fácil", especialmente se não estiverem adultos por perto e se estiverem em grupo. 
Paulo Jesus reforça que existem vários estudos que mostram a influência de representações, como imagens e vídeos, no comportamento violento de crianças e jovens, mas sublinha que esta não é uma relação de causalidade directa. Fatores como "a relação prévia desses sujeitos com a violência animal", os seus "valores éticos" e "o modo como uma ocasião similar se apresenta ou não" têm um peso importante no comportamento e atitudes dos estudantes. A idade também é outra dessas variáveis: "Quanto menor for a idade, e a complexidade cognitiva do jovem, mais problemática é a interpretação do conteúdo".  

Jorge Humberto, psicólogo do agrupamento de escolas de Valongo, tem uma opinião diferente. "Parece-me que a polémica não é justificada e é, em parte, consequência de um período de demasiada sensibilidade em relação a tudo o que acontece nas escolas." O psicólogo escolar considera que, num caso como este, os alunos "concentram-se exclusivamente no exercício em si" e que o exemplo "dificilmente será transposto para o quotidiano". E exemplifica, novamente com estes pequenos felinos: "É como aquela lengalenga infantil, 'Atirei o pau ao gato'. As crianças estão mais focadas na música do que no seu significado", sublinha.  
O psicólogo escolar não deixa de referir que "os autores do exercício poderiam ter encontrado um exemplo mais feliz", mas realça que este não terá "influência emocional" nas crianças e jovens, que "não se focam nele" e estão, "hoje em dia, bastante sensibilizadas para a questão dos animais".  
Paulo Jesus vai ainda mais longe e propõe uma formulação alternativa do enunciado, que considera mostrar um certo "humor deslocado" por parte de quem o elaborou. Mas, para ser realmente um exercício humorístico, segundo o psicólogo da Universidade de Lisboa, este teria que perguntar "qual a velocidade necessária para salvar o gato?". Assim, "o exercício já teria uma certa ironia e seria mais pedagógico."

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Pelo sim pelo não é bem melhor não arriscar, que o psicólogo de cima pode ter razão...
A polémica causada é em si mesmo um sinal de evolução das mentalidades. Claro que, conscientemente, a cançoneta do «atirei o pau ao gato» não tem ar de levar as crianças a agredir felinos domésticos, mas a ideia subjacente à letra não é edificante e não sei até que ponto é que não poderia ter o mesmo efeito que o enunciado do exercício de Física acima enunciado, a saber, o de implicitamente dar como adquirido que fazer mal a gatos é «normal» ou pelo menos corriqueiro. E já o foi, de facto. Noutros tempos era muitíssimo comum os rapazes caçarem pássaros e gatos só para os matarem, e ainda hoje há petizes que magoam animais só porque pensam que estão impunes para o fazer, como aqui foi mostrado numa notícia da semana passada, em que um grupelho de fedelhos ciganos se entretia a alvejar um gato com uma pressão de ar e ainda filmava a cena. Enfim, boa parte senão a maior parte da população actual foi formada em estreita ou relativa proximidade, consoante os casos, com o hábito da matança do porco, que se reveste quase sempre de um abjecto sadismo, pelo menos cá pelo burgo. Sintomaticamente esta e outras práticas foram já proibidas e é possível que o mesmo venha a acontecer com a tourada, tal como já aconteceu no Reino Unido com a caça à raposa. Na melhor das hipóteses constituem resquícios de selvajarias antigas que vão ficando para trás, pelo menos no que à civilização europeia diz respeito, com a sua valorização e dignificação progressiva de todos os seres vivos.