segunda-feira, dezembro 15, 2014

«NAVEGADOR SOLITÁRIO»


«Navegador Solitário», obra do falecido João Aguiar editada em 1996, narra a história de um jovem, Francisco Solitão, que parte das chamadas «berças» ignaras e provincianas para uma promessa muito sólida de carreira profissional mesclada com politiquice, na capital, sempre acompanhado pelo fantasma do seu espertíssimo, culto e mui desonesto avô. O rapaz, que tem o dom da «escrita automática», ou seja, é uma espécie de medium através do qual um espírito morto escreve as suas mensagens, capacidade da qual ele próprio duvida frequentemente, devido ao seu sentido de racionalidade, acaba por tomar as suas próprias opções de vida, conseguindo a pouco e pouco destrinçar o que realmente quer fazer da sua existência, o que, a princípio, não é tarefa fácil, tal o bombardeio de sugestões e ideais a que está sujeito numa época de crise - do grego «crisis», que é mudança - de valores, como sói dizer-se.
É leitura para divertimento ligeiro, abundando em sarcasmo do princípio ao fim, no estilo mordaz e cínico que bem caracteriza a  visão que João Aguiar transmite nos seus escritos, e uma ou outra reflexão sobre os meandros de poder político ao nível local e partidário, mas também do lugar do homem na sociedade e na religião, passeando aqui e ali por lugares-comuns - um pouco de «zeigeist» anti-consumista e anti-social, quase - mas conseguindo erguer-se acima deles com uma prosa que se afigura sinceramente reflexiva, não demasiadamente moralista relativamente ao ambiente de abandalhamento moral, social, cultural e sexual que descreve ao longo do livro. Consegue referir tudo isto sem se tornar em mixórdia de temas porque constitui simplesmente a narração de uma vivência portuguesa contemporânea na sua integralidade. 

A respeito da religião, cria momentos de divertida jocosidade. Recordo uma passagem em que, para demover o jovem de pensar que possa ter de facto algum contacto com o sobrenatural, um padre local põe-se com palavreado «técnico» a respeito de uma sua teoria, argumentando que «sob certas condições, verifica-se em ti uma associação de telepatia com criptomnésia, dois fenómenos que já estão identificados e estudados. Isso explicaria os tais factos objectivos (...)». Começando Solitão a rir-se, o sacerdote insistiu em saber «as causas do divertimento», um pouco picado, ao que o jovem respondeu: 
« - Desculpe, é que acho extraordinário... não, não digo bem: acho divertido o que acaba de dizer. Acho divertido ver até aonde vocês são capazes de ir para conservar o monopólio do mercado da comunicação com o transcendente.»
De imediato o padre perdeu a postura simpática e sorridente que costumava ostentar, do género de padre-porreiro-e-instruído-amigo-da-juventude. Solitão, sempre mordaz, ridiculariza-lhe o seu «sentido de humor postiço» e descreve a léria do clérigo nos seguintes termos: «são só termos que escondem a ignorância que ainda prevalece acerca dos fenómenos cujos efeitos são conhecidos e observáveis mas cuja natureza continua a ser um mistério. (... ) Substituir uma incógnita por outra incógnita (...)», isto numa crítica que é aplicável não apenas aos porta-vozes da Cristandade mas também à hoste dos cientistas, bem entendido.
E para saber mais é só preciso lê-lo, não custa muito, nem tampouco dinheiro, para quem encontrar o livro nalguma biblioteca pública.


1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

nova crise na Grécia irá desencadear colapso da UE
Leia mais: http://portuguese.ruvr.ru/news/2014_12_14/The-Guardian-nova-crise-na-Gr-cia-ir-desencadear-colapso-de-toda-a-UE-0686/

15 de dezembro de 2014 às 08:54:00 WET  

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