quarta-feira, dezembro 24, 2008

A MARCHA DOS CARETOS, TESTEMUNHO VIVO DE UMA ANCESTRALIDADE MARCIAL

O Outono e o Inverno marcam um dos tradicionais eixos organizadores da estruturação do tempo e do calendário festivo nordestino, com dominância reiterada das relações com o mundo dos mortos, cuja presença será constante até ao início do ciclo Primavera/Verão. Assim, as oferendas aos mortos, certos manjares cerimoniais, a crítica social e a irreverência que os mascarados manifestam parece terem estado ligadas a um culto dos antepassados que se pretendia pacífico e garante de uma relação cooperativa.
O Ciclo dos Doze Dias é, por excelência, o período das Festas dos Rapazes – também Festa da Mocidade, do Natal, dos Caretos ou dos Reis – que se organizam ainda um pouco por todo o Nordeste, mas com incidência preferencial no Planalto Mirandês e Terra Fria.
Tradicionalmente estas Festas dos Rapazes têm sido apontadas como constituindo rituais de passagem dos jovens à idade adulta, geralmente organizados através de mordomias de juízes ou meirinhos, em que os jovens solteiros se mascaram, assumindo, de forma acentuada, uma vertente liminar, transgressora e de crítica social. Os escritos sobre a matéria retratam os mascarados como incarnando o mal, o diabo, a morte e o vício pagão, gozando de total impunidade comportamental durante este curto período.



Não deixa de ser interessante observar o modo como o comportamento dos Caretos evoca um certo espírito guerreiro ancestral, ao mesmo tempo que se assemelha também ao que fazem hoje as crianças do mundo anglo-saxónico e céltico no Halloween - usar máscaras, circular em grupo pela povoação, bater às portas, receber alimentos...

Nas sociedades indo-europeias mais arcaicas, havia uma instituição muito característica e que tem feito correr muita tinta: as «sociedades de homens», ou, para utilizar o termo alemão, usualmente aplicado na historiografia do tema, as Mannerbünde.
Tratava-se de agrupamentos fechados de guerreiros de elite, uma espécie de ascetas de guerra, inteiramente dedicados ao ideal puramente bélico do combate pelo combate que culmina no atingir duma espécie de êxtase marcial, autêntica orgia de matança, destruição e, idealmente, de morte em batalha. Estes guerreiros nutriam uma lealdade férrea e sagrada entre si e para com o Deus que os inspira. Talvez o exemplo mais conhecido deste tipo de instituições seja o germânico, em que os guerreiros viviam devotados a Odin, Deus da Sabedoria e da Morte em Combate, Cujas filhas, as Valquírias, levariam os caídos no campo de batalha para o paraíso dos guerreiros ou Valhalla (Val, «caídos», Hall, «salão»). Aí, formariam os Einherjar, ou guerreiros de elite de Odin, que um dia lutariam ao lado do Deus na batalha final contra os inimigos dos Deuses e dos homens. E, na época do Yule (Natal), integravam a «Hoste Furiosa», séquito fantasmagórico de guerreiros mortos conduzidos que, na esteira das Valquírias e de Odin, atroavam os céus nocturnos em tenebrosa cavalgada.
Em vida, os melhores exemplos desta Mannerbünde nórdica são os Ulfednirs («Pele de Lobo») e os Berserkirs («Pele de Urso») que se cobriam de peles de animais, viviam todos juntos, dedicados a Odin, afastados do resto da sociedade, respeitavam apenas a guerra, censuravam os reis pela sua cobardia, e, quando possuídos pelos furor da batalha (odr, ou wot), uivavam como lobos e acreditavam transformar-se em seres sobre-humanos.


Outros exemplos há, no mundo indo-europeu, deste tipo de bandos marciais, nomeadamente em contextos célticos - os Fianna da Irlanda, por exemplo - e, possivel ou mesmo provavelmente, existiriam também na Ibéria indo-europeia, mais concretamente entre os Lusitanos, os Galaicos e os Celtiberos. A autora Blanca Garcia Albalat diz, na sua excepcional «Guerra e Religião na Lusitânia e na Galécia Antigas», que no quadrante étnico do noroeste hispânico, Bandue seria o Grande Deus da Guerra e talvez da Sabedoria adorado pelos grupos de guerreiros, dos quais Viriato poderia ter sido o líder mais famoso. A este título é entusiasmante verificar que lhe é atribuído o simbolismo do touro - ora, segundo um estudo muito convincente de Juan Carlos Olivares Pedreño, há uma ligação entre o Deus da Guerra do norte hispânico e o touro, teoria esta que parece confirmada por algumas descobertas arqueológicas, nomeadamente a do «Marte Pirenaico». Não me parece pois impossível que o touro de Viriato fosse, não um animal totémico, mas sim um símbolo do bando guerreiro do caudilho, cujo grande Deus de eleição seria então Bandua ou Bandia.
Na tradição popular, os Caretos devem chicotear ou bater nas jovens mulheres com um pau, para as fertilizar. Isto faz recordar que, no modo de pensar arcaico de Romanos e de Nórdicos, a energia dos jovens guerreiros do povo fertiliza os campos e vivifica toda a raça, daí que exista, desde tempos antigos, uma ligação do Deus da Guerra com a fertilidade dos campos, casos de Marte e de Thor.
Merece também referência que o próprio termo «Caretos», partindo da raiz «Car-» (que também está em «caraça») e estando ou não relacionado com a palavra «cara», faz pensar na raiz de Teónimos bélicos pré-romanos, tais como aquele que viria a ser latinizado como Mars Cariociecus.
Que a cor dominante das máscaras e das indumentárias seja o vermelho, pode ou não relacionar-se com o diabo, como diria talvez a Antropologia mais formal, mas, por coincidência, traz à mente o valor simbólico que esta cor tem nas tradições guerreiras indo-europeias, segundo Dumézil. De notar que um dos epítetos de Band é Roudeaecus, que Blanca-Albalat interpretou como palavra de origem céltica que significa «vermelho»...

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Velhas tradições a manter.

Portugal SSempre

27 de dezembro de 2008 às 22:00:00 WET  

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