PERSPECTIVA SOBRE O ATEU PERANTE A RELIGIÃO E PERANTE SI MESMO
«(...) o homem a-religioso recusa a transcendência, aceita a relatividade da «realidade» e acontece-lhe até duvidar do sentido da existência. As outras grandes culturas do passado conheceram, elas também, homens a-religiosos e não é impossível que tais homens tenham existido mesmo a níveis arcaicos de cultura, se bem que os documentos não os tenham atestado ainda. Mas é somente nas sociedades europeias modernas que o homem a-religioso se desenvolveu plenamente. O homem moderno a-religioso assume uma nova situação existencial: reconhece-se unicamente sujeito agente da História, e recusa todo o apelo à transcendência. Dito por outras palavras, não aceita nenhum modelo de humanidade fora da condição humana, tal qual ela se deixa decifrar nas diversas situações históricas. O homem faz-se a si próprio, e não consegue fazer-se completamente senão na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo. O sagrado é o obstáculo por excelência diante da sua liberdade. O homem só se tornará ele próprio no momento em que estiver radicalmente desmitificado. Só será verdadeiramente livre no momento em que tiver matado o último Deus.
Não nos cabe discutir, aqui, esta tomada de posição filosófica. Constatemos somente que, em última instância, o homem moderno a-religioso assume uma existência trágica e que a sua escolha existencial não é desprovida de grandeza. Mas este homem a-religioso descende do homo religiosus, e, queira-o ou não, é também obra deste, constituiu-se a partir das situações assumidas pelos seus antepassados. Em suma, é o resultado de um processo de dessacralização. Assim como a «Natureza» é o produto de uma secularização progressiva do Cosmos obra de Deus, assim o homem profano é o resultado de uma dessacralização da existência humana. Mas isto quer dizer que o homem a-religioso se constituiu por oposição ao seu predecessor, esforçando-se por se «esvaziar» de toda a religiosidade e de toda a significação trans-humana.
(...)
Teríamos de escrever toda uma obra sobre os mitos do homem moderno, sobre as mitologias camufladas nos espectáculos que ele prefere, nos livros que lê. O cinema, esta «fábrica de sonhos», retoma e utiliza inúmeros motivos míticos: a luta entre o Herói e o Monstro, os combates e as provas iniciáticas, as figuras e as imagens exemplares (a Rapariga, o Herói, paisagem paradisíaca, o inferno, etc.). Até a leitura comporta uma função mitológica - não somente porque ela substitui a narração dos mitos nas sociedades arcaicas e a literatura oral, viva ainda nas comunidades rurais da Europa, mas sobretudo porque, graças à leitura, o homem moderno consegue obter uma «saída do Tempo» comparável à efectuada pelos mitos. Quer se «mate» o tempo com um romance policial, ou se penetre num universo temporal alheio, aquele que qualquer romance representa, a leitura projecta o moderno fora do seu tempo pessoal e integra-o noutros ritmos, fá-lo viver numa outra «história».
A grande maioria dos «sem religião» não está, propriamente falando, liberta dos comportamentos religiosos, das teologias e das mitologias. (...) Bastará, para dar um só exemplo, lembrarmos a estrutura mitológica do Comunismo e o seu sentido escatológico. Marx retoma e prolonga um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático-mediterrânico, a saber: o papel redentor do Justo (o «eleito», o «ungido», o «inocente»; nos nossos dias, o proletariado), cujos sofrimentos são chsmados a mudar o estatuto ontológico do mundo. Com efeito, a sociedade sem classes de Marx e a consequente desaparição das tensões históricas encontram o seu precedente mais exacto no mito da Idade de Ouro que, segundo múltiplas tradições, caracteriza o começo e o fim da História. Marx enriqueceu este mito venerável de toda uma ideologia messiânica judeo-cristã: por um lado, o papel profético e a função soteriológica que ele atribui ao proletariado; por outro, a luta final entre o Bem e o Mal, que pode aproximar-se facilmente do conflito apocalíptico entre o Cristo e o Anticristo, seguido da vitória decisiva do primeiro. É até significativo que Marx retome por sua conta a esperança escatológica judeo-cristã de um fim absoluto da História: separa-se nisso dos outros filósofos historicistas (por exemplo Croce e Ortega y Gasset), para os quais as tensões da História são consubstanciais à condição humana e por consequência jamais podem ser completamente abolidas.
Mas não é unicamente nas «pequenas religiões» ou nas místicas políticas que se reencontram comportamentos religiosos camuflados ou degenerados: reconhecemo-los igualmente em movimentos que se proclamam francamente laicos, até mesmo anti-religiosos. Assim, por exemplo, no nudismo ou nos movimentos a favor da liberdade sexual absoluta, ideologias onde é possível decrifrar os vestígios da «nostalgia do Paraíso», o desejo de reintegrar o estado edénico de antes da queda, quando o pecado não existia e não havia ruptura entre as beatitudes da carne e a consciência.
Além disso, é interessante constatar quantas encenações iniciáticas persistem ainda em numerosas acções e gestos do homem a-religioso dos nossos dias. Deixamos de lado, bem entendido, as situações onde sobrevive, degradado, um certo tipo de iniciação; por exemplo, a guerra, e em primeiro lugar os combates individuais (sobretudo dos aviadores), feitos que comportam «provas» homologáveis às das iniciações militares tradicionais, mesmo se, nos nossos dias, os combatentes já se não dão conta da significação profunda das suas «provas» e, por consequência, pouco aproveitam do seu alcance iniciático. Mas mesmo técnicas especificamente modernas, como a psicanálise, mantêm ainda o padrão iniciático. O paciente é convidado a descer muito profundamente em si mesmo, a fazer reviver o seu passado, a afrontar de novo os seus traumatismos - e, do ponto de vista formal, esta operação perigosa assemelha-se às descidas iniciáticas aos «infernos», entre os espectros, e aos combates com os «monstros». Assim como o iniciado devia sair vitoriosamente das suas provas, em suma devia «morrer» e «ressuscitar» para poder aceder a uma existência plenamente responsável e aberta aos valores espirituais - a análise dos nossos dias deve afrontar o seu próprio «inconsciente», assediado de espectros e de monstros, para encontrar nisso a saúde e a integridade psíquicas e, por consequência, o mundo de valores culturais.
(...)
Os conteúdos e as estruturas do inconsciente são o resultado das situações existenciais imemoriais, sobretudo das situações críticas, e é por essa razão que o inconsciente apresenta uma aura religiosa. Porque toda a crise existencial põe de novo em questão ao mesmo tempo a realidade do mundo e a presença do homem no mundo: isto quer dizer que a crise existencial é, em suma, «religiosa», visto que, aos níveis mais arcaicos das culturas, o ser confunde-se com o sagrado. Conforme vimos, é a experiência do sagrado que funda o mundo, e até a religião mais elementar é, antes de tudo, uma ontologia. Dito de outro modo, na medida em que o inconsciente é o resultado das inúmeras experiências existenciais, ele não pode deixar de assemelhar-se aos diversos Universos religiosos. Porque a religião é a solução exemplar de toda a crise existencial. Solução exemplar, não somente porque é indefinidamente repetível, mas também porque é considerada de origem transcendental e, por consequência, valorizada como revelação recebida de um outro mundo, trans-humano. A solução religiosa não somente resolve a crise, mas ao mesmo tempo torna a existência «aberta» a valores que já não são contingentes nem particulares, permitindo assim ao homem ultrapassar as situações pessoais e, no fim de contas, o acesso ao mundo do espírito.
In «O Sagrado e o Profano - A Essência das Religiões», de Mircea Eliade, pág. 209 e seguintes.
Se bem que a evocação da «transcendência» possa suscitar algum equívoco, visto significar para muitos algo de completamente separado da imanência, creio que estas passagens da obra de Eliade são no essencial bastante certeiras quanto ao significado da Religião em si e sobretudo o significado que ela pode ter para o homem contemporâneo.
Não nos cabe discutir, aqui, esta tomada de posição filosófica. Constatemos somente que, em última instância, o homem moderno a-religioso assume uma existência trágica e que a sua escolha existencial não é desprovida de grandeza. Mas este homem a-religioso descende do homo religiosus, e, queira-o ou não, é também obra deste, constituiu-se a partir das situações assumidas pelos seus antepassados. Em suma, é o resultado de um processo de dessacralização. Assim como a «Natureza» é o produto de uma secularização progressiva do Cosmos obra de Deus, assim o homem profano é o resultado de uma dessacralização da existência humana. Mas isto quer dizer que o homem a-religioso se constituiu por oposição ao seu predecessor, esforçando-se por se «esvaziar» de toda a religiosidade e de toda a significação trans-humana.
(...)
Teríamos de escrever toda uma obra sobre os mitos do homem moderno, sobre as mitologias camufladas nos espectáculos que ele prefere, nos livros que lê. O cinema, esta «fábrica de sonhos», retoma e utiliza inúmeros motivos míticos: a luta entre o Herói e o Monstro, os combates e as provas iniciáticas, as figuras e as imagens exemplares (a Rapariga, o Herói, paisagem paradisíaca, o inferno, etc.). Até a leitura comporta uma função mitológica - não somente porque ela substitui a narração dos mitos nas sociedades arcaicas e a literatura oral, viva ainda nas comunidades rurais da Europa, mas sobretudo porque, graças à leitura, o homem moderno consegue obter uma «saída do Tempo» comparável à efectuada pelos mitos. Quer se «mate» o tempo com um romance policial, ou se penetre num universo temporal alheio, aquele que qualquer romance representa, a leitura projecta o moderno fora do seu tempo pessoal e integra-o noutros ritmos, fá-lo viver numa outra «história».
A grande maioria dos «sem religião» não está, propriamente falando, liberta dos comportamentos religiosos, das teologias e das mitologias. (...) Bastará, para dar um só exemplo, lembrarmos a estrutura mitológica do Comunismo e o seu sentido escatológico. Marx retoma e prolonga um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático-mediterrânico, a saber: o papel redentor do Justo (o «eleito», o «ungido», o «inocente»; nos nossos dias, o proletariado), cujos sofrimentos são chsmados a mudar o estatuto ontológico do mundo. Com efeito, a sociedade sem classes de Marx e a consequente desaparição das tensões históricas encontram o seu precedente mais exacto no mito da Idade de Ouro que, segundo múltiplas tradições, caracteriza o começo e o fim da História. Marx enriqueceu este mito venerável de toda uma ideologia messiânica judeo-cristã: por um lado, o papel profético e a função soteriológica que ele atribui ao proletariado; por outro, a luta final entre o Bem e o Mal, que pode aproximar-se facilmente do conflito apocalíptico entre o Cristo e o Anticristo, seguido da vitória decisiva do primeiro. É até significativo que Marx retome por sua conta a esperança escatológica judeo-cristã de um fim absoluto da História: separa-se nisso dos outros filósofos historicistas (por exemplo Croce e Ortega y Gasset), para os quais as tensões da História são consubstanciais à condição humana e por consequência jamais podem ser completamente abolidas.
Mas não é unicamente nas «pequenas religiões» ou nas místicas políticas que se reencontram comportamentos religiosos camuflados ou degenerados: reconhecemo-los igualmente em movimentos que se proclamam francamente laicos, até mesmo anti-religiosos. Assim, por exemplo, no nudismo ou nos movimentos a favor da liberdade sexual absoluta, ideologias onde é possível decrifrar os vestígios da «nostalgia do Paraíso», o desejo de reintegrar o estado edénico de antes da queda, quando o pecado não existia e não havia ruptura entre as beatitudes da carne e a consciência.
Além disso, é interessante constatar quantas encenações iniciáticas persistem ainda em numerosas acções e gestos do homem a-religioso dos nossos dias. Deixamos de lado, bem entendido, as situações onde sobrevive, degradado, um certo tipo de iniciação; por exemplo, a guerra, e em primeiro lugar os combates individuais (sobretudo dos aviadores), feitos que comportam «provas» homologáveis às das iniciações militares tradicionais, mesmo se, nos nossos dias, os combatentes já se não dão conta da significação profunda das suas «provas» e, por consequência, pouco aproveitam do seu alcance iniciático. Mas mesmo técnicas especificamente modernas, como a psicanálise, mantêm ainda o padrão iniciático. O paciente é convidado a descer muito profundamente em si mesmo, a fazer reviver o seu passado, a afrontar de novo os seus traumatismos - e, do ponto de vista formal, esta operação perigosa assemelha-se às descidas iniciáticas aos «infernos», entre os espectros, e aos combates com os «monstros». Assim como o iniciado devia sair vitoriosamente das suas provas, em suma devia «morrer» e «ressuscitar» para poder aceder a uma existência plenamente responsável e aberta aos valores espirituais - a análise dos nossos dias deve afrontar o seu próprio «inconsciente», assediado de espectros e de monstros, para encontrar nisso a saúde e a integridade psíquicas e, por consequência, o mundo de valores culturais.
(...)
Os conteúdos e as estruturas do inconsciente são o resultado das situações existenciais imemoriais, sobretudo das situações críticas, e é por essa razão que o inconsciente apresenta uma aura religiosa. Porque toda a crise existencial põe de novo em questão ao mesmo tempo a realidade do mundo e a presença do homem no mundo: isto quer dizer que a crise existencial é, em suma, «religiosa», visto que, aos níveis mais arcaicos das culturas, o ser confunde-se com o sagrado. Conforme vimos, é a experiência do sagrado que funda o mundo, e até a religião mais elementar é, antes de tudo, uma ontologia. Dito de outro modo, na medida em que o inconsciente é o resultado das inúmeras experiências existenciais, ele não pode deixar de assemelhar-se aos diversos Universos religiosos. Porque a religião é a solução exemplar de toda a crise existencial. Solução exemplar, não somente porque é indefinidamente repetível, mas também porque é considerada de origem transcendental e, por consequência, valorizada como revelação recebida de um outro mundo, trans-humano. A solução religiosa não somente resolve a crise, mas ao mesmo tempo torna a existência «aberta» a valores que já não são contingentes nem particulares, permitindo assim ao homem ultrapassar as situações pessoais e, no fim de contas, o acesso ao mundo do espírito.
In «O Sagrado e o Profano - A Essência das Religiões», de Mircea Eliade, pág. 209 e seguintes.
Se bem que a evocação da «transcendência» possa suscitar algum equívoco, visto significar para muitos algo de completamente separado da imanência, creio que estas passagens da obra de Eliade são no essencial bastante certeiras quanto ao significado da Religião em si e sobretudo o significado que ela pode ter para o homem contemporâneo.
5 Comments:
«(...) o homem a-religioso recusa a transcendência, aceita a relatividade da «realidade» e acontece-lhe até duvidar do sentido da existência."
- Qual o sentido da existência?!
SolAzul
Não me parece que seja o tipo de pergunta que atormente excessivamente o religioso.
Qual o sentido da existência... quem o poderá dizer... o que parece verdade é que o crente tem pelo menos uma orientação na vida, acredita que veio de Algo divino e que para Lá voltará, isto generalizando muito por alto.
... mas "atormenta-me" a mim. Por essa razão procurei, procuro e continuarei a procurar, mesmo que esta procura, se estenda até ao fim da minha própria, existência.
Tenho o direito a saber porquê. Assim como todo aquele que quer saber de onde onde vem, o que por aqui anda a fazer, e para onde irá.
Não é correcto nem justo que não sejamos informados daquilo que é o mais sério e o mais importante para todo o ser humano. Tenha ele "alma" ou não!
... se insistem em não nos informar sobre todos estes porquês, pareceremos joguetes de Forças Maiores. Falta é saber o porquê de tanto mistério e até engano.
A explicação do Caturo a pergunta tão quase impossível para qualquer um, satisfaz-me, não porque me dê a chave (infelizmente) que a todos faz falta mas sim porque a considerei simples e honesta.
(Mesmo assim continuo a não ter simpatia pela existência. Rouba-me de mim.)
Obrigada
SolAzul
Estive a ler calmamente o texto. Fica-me uma questão:
- Sem religiosidade, não existe transcendência humana?!
Parece que o texto afirma claramente com os vários exemplos mencionados, que no fundo, verdadeiramente, todo o homem é religioso. Pode até crer que o não é. Negar essa evidência, até de si mesmo. Mas, segundo o texto, não escapa àquilo que, pelos vistos, transporta em si, desde sempre.
O Caturo que sabe destas coisas, talvez me possa responder, à questão.
SolAzul
Não sei se existe transcendência fora da religiosidade, desconheço o que se passa nos meios iniciáticos e mágicos...
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