segunda-feira, janeiro 22, 2007

ROBERT ERWIN HOWARD, BARDO OSSIÂNICO DO SÉCULO XX


Crom, Deus Supremo da principal personagem de Robert Erwin Howard




Fala-se aqui de Robert Erwin Howard (22 de Janeiro de 1906 – 11 de Junho de 1936).

Num tempo em que reina ao nível das elites intelectuais a pequenez de espírito, feita, por um lado, de utilitarismo, de sanha positivista, e, por outro, de auto-tortura existencialista, angustiante, por vezes nihilista, figuras houve que, no mundo da literatura, remaram contra a maré e, inesperadamente ou talvez não, foram bem sucedidas. Salientam-se aqui diversos nomes, entre os quais se contam John Ronald Reuel Tolkien, Michael Moorcok (autor de «Elric») e Robert E. Howard, criador de algumas das personagens mais famosas da ficção «pop» do século XX e que mais profunda marca deixaram nos imaginários de várias gerações, eventualmente actualizando, verdadeiramente revigorando, arcaicos arquétipos colectivos ainda vivos na mente do homem branco ocidental.

Erwin Howard cedo despertou para as maravilhas da literatura fantástica; correspondendo-se frequentemente com certo grande autor de contos de terror, H. P. Lovecraft, devorou e escreveu incontáveis narrativas de terror e de sobrenatural, publicadas nas revistas especializadas nesse tipo de ficção.

É a Howard atribuída a criação de todo um novo género ficcional - o chamado «Sword and Sorcery», ou, em Português, «Espada e Feitiçaria».
Espada e Feitiçaria é, como o próprio nome indica, um estilo de literatura cujos elementos essenciais são a bruxaria e o belicismo fundado em modelos da Antiguidade e/ou da Idade Média. Trata-se, como é bom de ver, da recuperação duma corrente épica e fundamentalmente arcaica (típico das gestas de Hércules, Jasão, Ulisses, Sigurd, Cuchulain), mas, desta feita, com um pendor marcadamente mais sombrio e mágico, fazendo da Espada & Feitiçaria um produto típico do Romantismo.
Uma característica da Espada e Feitiçaria que confirma este seu enquadramento romântico é a sua gritante (raiando por vezes o kitsch) apologia dum Norte duro e puro contra um Sul decadente e luxuoso, conflito tão absolutamente típico do Romantismo, o qual glorificava o bárbaro germânico e céltico por contraste com o civilizado e tortuoso mediterrânico. Convém a este propósito não esquecer que o Romantismo surge como reacção ao Classicismo, isto é, a extrema valorização da civilização clássica greco-romana.

Pode dizer-se que as principais personagens de Howard se definem assim: bárbaros de modos rudes mas índole justa e aparência mais ou menos setentrional batendo e desprezando os manhosos, cobardes e viciosos homens do sul oriental ou orientalizado.
Há até quem veja nisto uma postura racialista ou mesmo racista...

Bom exemplo deste ambiente estético e mental é a saga do Rei Kull, uma das suas primeiras personagens.
Kull, bárbaro de origem atlante protegido e criado em dada parte da sua infância por tigres, é depois adoptado por outra tribo atlante, levando assim uma vida relativamente normal até ao dia em que, por matar, movido pela compaixão, uma jovem dessa tribo prestes a ser queimada viva, vê-se obrigado a fugir da sua terra, sendo depois aprisionado por traficantes de escravos, tornando-se por isso mesmo num escravo das galés, passando daí a gladiador de arena e depois a soldado e de soldado a oficial de alta patente; mercê da sua ousadia, colabora numa conspiração palaciana para derrubar o monarca de Valúsia, o tirânico Borna, travando com este um rijo e extenuante duelo e acabando por abatê-lo in extremis (muito ao gosto norte-americano quase-milagreiro que não raras vezes se torna enjoativamente previsível, diga-se); mas em vez de ceder a coroa a um dos seus pretensos manipuladores, resolve tomá-la para si, sem que ninguém se atreva a disputar-lha abertamente. A esmagadora maioria das suas histórias decorre a partir daí - e praticamente todas elas são centralmente marcadas pelo contraste entre a rudeza franca e brutal, dir-se-ia germânica, de Kull, e a subtileza ardilosa e conspirativa dos seus conselheiros e dos nobres da sua corte, que o odeiam mas que não têm coragem de o afrontar.


Ora vejamos a panorâmica geral relativa a esta personagem: no trono do mais orgulhoso e civilizado reino do mundo de então, está um bárbaro estrangeiro - primeiro sinal de decadência, à maneira da Romanidade tardia; e, rodeando-o, assistindo-o na tarefa da governação, ajeita-se uma pandilha de bandalhos cobardes e servis - segundo sinal de decadência. Contra isto, e sempre contra o Poder, qualquer que ele seja, ergue-se a voz do menestrel Ridondo, a tudo e todos satirizando.

Fosse por instatisfação com o que tinha já engendrado ou por vontade de ir ainda mais longe, Erwin Howard cria então aquele que viria a ser o seu ex-libris, o seu mais famoso herói, quase que o arquétipo, para a actual cultura pop, do bárbaro guerreiro - Conan da Ciméria.

Conan - guerreiro, mercenário, ladrão, salteador, pirata, soldado e, um dia, rei do maior dos reinos da sua época (Aquilónia); gigante de sombrio semblante, ferozes olhos azuis e longo cabelo negro, correspondendo assim ao tipo céltico, segundo se pensava na altura em que Howard criou esta personagem. De facto, o próprio nome «Conan» é céltico irlandês, bem como o principal Deus por ele constantemente invocado, Crom (Crom Cruaich, na Irlanda). O ferreiro Corin, seu pai, tem igualmente um nome céltico, e, quando em certo episódio Conan regressa à sua fria e enevoada terra natal, o clã que entretanto escravizara a sua família tinha igualmente um nome céltico irlandês (Diarmaid). Outras Divindades célticas irlandesas invocadas ocasionalmente por Conan ou pela gente do seu povo são Morrigan, Macha, Nemain, Badb, tudo Deusas da Guerra, e também Manannan Mac Lir, Deus mágico e guerreiro comum à Irlanda, à Ilha de Man e a Gales (onde é Manawydan Map Llyr).

Howard dá aqui vazão aos seus conhecimentos de História e Mitologia, visto que a época de Conan é incomparavelmente mais rica, diversificada e parecida com a História antiga real do que a do seu antecessor Kull. Neste aspecto, assemelha-se vagamente ao britânico Tolkien, se bem que o mapa por si criado seja mais detalhado e parecido com o da História Antiga do que o do referido autor inglês.



- os reinos negros (Kush, Darfar, etc.);
- os Shemitas, antepassados dos Semitas;
- Stygia, que representa o Egipto;
- Turan, terra dos Turanianos (possíveis antepassados dos Turcos);
- Khitai, que representa a China e o oriente em geral;
- Vendhia, a Índia;
e, a partir daqui, os outros povos são descendentes daquilo a que Howard chama os «Hiborianos», os quais, está-se mesmo a ver, representam os Arianos, como aliás o próprio autor confirma na medida em que, na sua fantasia, o mundo por si criado é directamente antecessor do mundo antigo conhecido pela História científica:
- Argos, que representa os navegadores gregos;
- Corynthia, que representa também os Helenos;
- Zíngara, nação marítima, que representa talvez os Ibéricos;
- Aquilónia, cujo nome está mesmo a dizer «Aquila», símbolo do Império Romano;
- Hirkânia, que representa os povos das estepes da Europa oriental (Citas e afins);
- os Pictos, que representam evidentemente os Pictos históricos;
- os Aesires, que representam os nórdicos loiros; os Vanires, seus inimigos eternos, representam os nórdicos ruivos; ora, na mitologia nórdica factual, os Aesires constituem a principal família de Deuses, enquanto os Vanires são Deuses inimigos (mais tarde, estabelece-se a paz entre estes dois grupos); a leste de Asgard, a mítica Hiperbórea;
- na fronteira a sul destas três nações nórdicas, estão a Nemédia, representando talvez um povo céltico ou germânico, a Britúnia, cuja semelhança onomástica com a Britânia dispensa mais comentários, e a Ciméria.

Ora a Ciméria existiu historicamente, ou seja, independentemente da fantasia de Howard - localizava-se nas imediações do Mar Negro. Os Cimérios eram etnicamente irânicos, estreitamente aparentados com os Citas e com os Alanos (que vieram parar à Lusitânia), e, menos directamente, com os Persas e com os Medos. A Ciméria aparece na «Odisseia» de Homero descrita como terra de sombras e tristeza eternas, local onde se situa a entrada para o Hades ou Mundos dos Mortos. E é assim a Ciméria de Howard: o povo é tétrico, sóbrio e sereno, só exulta quando está em batalha e tem como Deus Máximo o imane Crom, que vive no alto das gélidas montanhas, troça dos fracos, só ajuda os fortes e é tão sombrio e marcial como o povo que O adora. A diferença entre a Ciméria de Homero e a de Howard é essencialmente étnica - porque o norte-americano coloca-a no Ocidente, mais concretamente na porção de terra que mais tarde viria a constituir a Irlanda, e dá-lhe toda uma cultura celta irlandesa. É possível que Howard tenha lido no seu tempo qualquer teoria que fazia os Celtas virem directamente das imediações do Mar Negro.

Pessoalmente, fiquei farto desta personagem quando constatei que as suas histórias batiam sempre nos mesmos lugar-comuns, passavam-se quase sempre no oriente refinado e mui raramente no norte ocidental e, além do mais, o comportamento de Conan fazia dele uma espécie de caubói de espada - viajante solitário, sempre em busca dum tesouro, realista, temendo nada nem ninguém excepto a feitiçaria, odiando bruxos e bruxedos, sempre pronto a comer e especialmente a beber alarvemente, ávido de mulheres de vida fácil que o divertissem pela noite dentro, confiando apenas no aço e acabando depois por se meter numa aventura cheia de sangue na qual salva uma donzela em apuros e acaba por não ganhar fortuna alguma - em tudo isto, continuava ausente, a meu ver, o ideal, a luta por algo mais do que o vil metal. Aliás, há demasiados traços nas histórias das personagens mais famosas de Howard - Conan, Sonja e Kull - que compõem um cenário mental no qual transparece um certo cinismo e desprezo para com tudo aquilo que pertença ao foro da religião ou dos idealismos. Não sei se tal característica terá origem na pena de Howard, ou, mais provavelmente, na dos argumentistas norte-americanos de banda desenhada aos quais estas personagens eram entregues. É neste contexto que brilha, por contraste, a curta história em que Conan, regressando à sua lúgubre e álgida pátria setentrional, constata que o que restou da sua família após a morte do seu pai está escravizada pelo clã dos Diarmaid, gente contra a qual Conan exerce terrível e completa vingança, aniquilando-a por completo por meio da força do seu braço e do aço da espada do seu pai.

Mais tarde, quando a exigência idealista juvenil se me abranda, volta a ser-me possível apreciar as singelas sagas que fazem mergulhar num mundo de encantamento, sem que dele se deva esperar demasiado em matéria de grandes verdades profundas - é que a leitura nem sempre se destina a descobrir o segredo da existência.

Antes e depois de Conan, brotaram da ensombrada mas fogosa imaginação de Howard outras figuras de heroísmo bélico, tais como o justiceiro puritano Solomon Kane (que nada tem a ver com Espada e Feitiçaria mas sim com vampiros, piratas e criminosos do século XVI), o pugilista e marinheiro Steve Costigan e o guerreiro irlandês Cormac Mac Art.

Cormac Mac Art

Cormac Mac Art defende a costa da Irlanda contra os piratas nórdicos e constituiu decerto um campo fértil para que Howard desse asas ao seu gosto pelo épico do noroeste europeu.

Outra das estrelas especialmente cintilantes da constelação forjada na mente de Howard é a ruiva Sonya, que foi mais tarde ligeiramente transformada pela pena de dois autores de banda desenhada, ficando então conhecida como a irascível Sonja que, depois de violada na sua infância, algures nas estepes da sua Hirkânia natal, viu aparecer perante si a feroz Scathach, Deusa das Batalhas (mitologia irlandesa, novamente), que com a jovem Sonja estabeleceu um pacto - a Deusa conduzi-la-ia ao conhecimento das artes da batalha, mas Sonja juraria que nunca se entregaria a homem algum a menos que este a vencesse em combate.


Sonja fez vida de guerreira, de salteadora, de mercenária, em nítido paralelismo com Conan, tendo-se aliás cruzado com ele numerosas vezes, sempre com uma rivalidade amigável, deixando por vezes antever uma possibilidade de romance que nunca se concretiza, dado que a subtil e astuciosa ruiva acaba sempre por se conseguir servir da força bélica do cimério nos seus negócios mas evita depois dispensar-lhe a compensação por ele esperada.


Uma personagem menos famosa mas nem por isso menos bem conseguida é Bran Mak Morn, herói cujas aventuras se passam num cenário espácio-temporal real, ao contrário do que sucede com Conan, Kull e Sonja. E também aqui está presente a noção de decadentismo: Bran Mak Morn é o último dos reis pictos, homem lúcido, sóbrio e taciturno reinando sobre uma população crescentemente estupidificada, em notória regressão, próxima do seu ocaso que a apagaria da História. Bran, homem de arcaica raça mediterrânica, existente na Escócia antes dos Celtas chegarem, obstina-se em unir todos os povos bárbaros do norte contra os invasores romanos. Nesta espinhosa empresa, Bran Filho de Morn tem de combater os preconceitos e desconfianças que dividem as várias estirpes que habitam o norte europeu - Pictos, Celtas e Vikings - sabendo todavia, ou pressentindo, que, faça o que fizer, a decadência final da sua raça não poderá ser evitada. Recordo-me, a propósito, duma fala sua em que diz, a um nórdico aprisionado pela sua tribo picta, qualquer coisa como «A minha gente é imbecil porque odeia mais os nórdicos do que os Romanos».

Nisto, e em tudo o mais que escreveu, Howard imprime a marca do seu carácter taciturno, triste, descrente, cínico, amargo, socialmente marginalizado; Howard alimenta paralelamente uma fé muito especial no poder da força bruta, postura essa que o leva a ingressar no pugilismo e a tornar-se fisicamente muito possante. Recorde-se aqui, mais uma vez, que a sua principal personagem, quando tem de enfrentar os mais hediondos oponentes e os mais aterradores perigos, confia sempre no único segredo que o seu Deus Crom revelou aos Cimérios - o do aço, que tudo resolve e contra o qual nada se sustém.

O desprezo que nutria pelo mundo em geral era nele acompanhado por uma profunda tendência suicida; e, ao mesmo tempo, por um grande apego à mãe - a tal ponto assim era que, quando soube que esta estava às portas da morte, optou ele próprio pelo suicídio, não tendo mais de três décadas quando abandonou um mundo que a seu ver se encontrava repleto de dor, extrema dureza e violência.
Contraditoriamente, ou talvez por compensação, deixou ao mundo uma panóplia de ícones ficcionais mas simbólicos que nada têm de suicidário e que, no seu devido lugar, podem contribuir para que as novas gerações se voltem para o manancial de insuperável e para a maioria insuspeitável riqueza que a sua herança mítica europeia lhes fornece.

3 Comments:

Blogger Nacionalista said...

Já não visitava o blogue há algum tempo. Parabéns por este excelente post.

24 de janeiro de 2007 às 19:35:00 WET  
Anonymous Anónimo said...

sim senhora, muito boa analise do tema.
também já li algumas das bandas desenhadas do Conan o Bárbaro e também da Red Sonja e dentro do género até gosto. o que eu não gosto mesmo é de super heróis de fatinhos de licra :-D


Sara

30 de janeiro de 2007 às 01:27:00 WET  
Blogger Caturo said...

Eu desses também gosto, eheh. Acho que são uma variante moderna da fulgurante armadura medieval.

30 de janeiro de 2007 às 12:51:00 WET  

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