segunda-feira, fevereiro 15, 2016

EUROPEUS PODERÃO TER HERDADO DOS NEANDERTAIS MAIS DO QUE SE SUPUNHA

Já se tinha especulado sobre o legado genético que as populações humanas herdaram dos neandertais e o seu impacto na saúde. Mas, pela primeira vez, uma equipa de cientistas analisou uma base de dados médica de uma população com o genoma sequenciado em que estavam descritas as suas doenças, e foi procurar se havia genes de neandertais que aumentam o risco para problemas de saúde.
O resultado mostrou que há traços deixados por aqueles humanos que nos tornam mais susceptíveis à depressão, ao desenvolvimento de queratose actínica (crescimento de sinais de pele que podem originar cancro), ao vício do tabaco e à hipercoagulação do sangue, conclui o novo estudo publicado na última edição da revista científica Science. 
Alguns acontecimentos da história da humanidade estão hoje registados no genoma das populações. Quando parte dos nossos antepassados saiu de África e migrou para a Europa e a Ásia, há menos de 100.000 anos, encontrou-se com outros humanos que já viviam naquelas regiões há centenas de milhares de anos, como os neandertais. Em 2010, a sequenciação do genoma dos neandertais permitiu descobrir que tinha restado entre 1 e 3% desse genoma nas populações humanas actuais descendentes dos euroasiáticos. Isto provou que houve cruzamentos entre os humanos anatomicamente modernos e os neandertais, há cerca de 60.000 anos.
Um gene tem diversas variações na população a que se chamam “alelos”. Para cada gene da espécie humana, recebemos duas cópias – um alelo do pai e um alelo da mãe. Assim, uma criança filha de um neandertal e de um humano moderno (a nossa espécie) terá recebido, para cada gene, um alelo do neandertal e outro do humano moderno.
A maioria dos alelos dos neandertais acabou por desaparecer na população humana, o que mostra que muitos destes genes eram negativos na sobrevivência das populações, explica o novo estudo da equipa de John Capra, da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, nos Estados Unidos. “No entanto, alguns dos alelos de neandertal encontram-se [na população humana] numa frequência maior do que o esperado, por isso podem ter dado uma vantagem evolutiva”, lê-se no artigo.
O que quer que tenha ocorrido, hoje estes alelos continuam a existir na população humana, funcionando normalmente. Alguns estudos já tinham especulado que estes genes poderiam ter influência no tipo de pele e no tipo de cabelo que se pode ter, no metabolismo dos lípidos e na depressão, entre outros aspectos.

28 mil pessoas estudadas
A equipa de John Capra deu o salto seguinte. Para avaliar de uma forma mais directa a influência do genoma neandertal, os investigadores usaram a base de dados chamada Registo Médico Electrónico e Rede Genómica (Emerge, nome dado em inglês), financiada pelo Instituto Nacional de Investigação do Genoma Humano, dos Estados Unidos. Esta base de dados tem para cada pessoa (os dados são anónimos) a sequência genética e o seu historial de saúde – se sofreu de aterosclerose ou teve uma doença cardiovascular, por exemplo.
Com esta informação, é possível fazer estudos de associação genómica com doenças específicas. É assim que se descobre que um determinado alelo de um gene está associado a uma doença. Isto porque é possível verificar com estas bases de dados que as pessoas com aquele alelo têm aquela doença mais frequentemente do que as outras pessoas que não têm esse alelo.
Pode-se até olhar exclusivamente para variações de uma única “letra” do ADN na causa de problemas de saúde. Há casos extremos em que a mutação de uma única letra do ADN de um gene causa doenças, como a anemia falciforme, em que a alteração de uma letra do gene que comanda a produção da proteína hemoglobina provoca este tipo de anemia. Mas na maior parte das variações de letras, os efeitos são inexistentes ou muito mais subtis.
Neste caso, os investigadores só estavam interessados nos alelos vindos dos neandertais e procuraram associar variações de letras destes alelos na susceptibilidade a doenças. A equipa analisou os dados de cerca de 28.000 adultos. “A nossa descoberta mais importante é que o ADN de neandertal influencia traços clínicos nos humanos modernos: descobrimos associações numa grande variedade de traços, incluindo doenças imunitárias, dermatológicas, neurológicas, psiquiátricas e reprodutivas”, diz John Capra, citado num comunicado da Universidade de Vanderbilt.
Os resultados sobre as doenças psiquiátricas foram surpreendentes, como o caso da depressão. Algumas variantes influenciaram o risco da depressão: umas de forma mais positiva, outras mais negativa. “O cérebro é incrivelmente complexo, por isso é razoável esperar que a introdução de alterações vindas de um caminho evolutivo diferente possa ter consequências negativas”, contextualiza Corinne Simonti, outra autora do estudo, citada no mesmo comunicado.
Há casos em que as características herdadas dos neandertais poderão ter sido inicialmente benéficas para os nossos antepassados, mas hoje são mais prejudiciais. Um exemplo disso é uma variante que acelera a coagulação do sangue, ajudando a cicatrizar as feridas e impedindo que as bactérias e outros agentes patogénicos entrem no corpo. Hoje, essa variante pode ser negativa porque a coagulação do sangue aumenta o risco do embolismo pulmonar, de complicações na gravidez e de acidentes vasculares cerebrais.
Mas será que só se encontrou um legado negativo dos neandertais por ter sido usada uma base de dados médica, com informação sobre doenças? “A utilização de registos de saúde electrónicos influencia o tipo de traços que podemos testar para procurar associações [com certas características humanas]. Poderíamos ter encontrado ADN de neandertal que era protector de certas doenças, mas não vimos grandes provas disso nos humanos modernos”, responde ao PÚBLICO John Capra. “Ainda assim, poderão existir outros efeitos positivos do genoma dos neandertais que não são importantes para a saúde.”

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Fonte: https://www.publico.pt/ciencia/noticia/do-vicio-do-tabaco-a-depressao-o-que-herdamos-dos-neandertais-1723160?page=-1