DENÚNCIA DA BASTARDIA ANTI-IDENTITÁRIA SUBJACENTE AO ACORDO ORTOGRÁFICO DE 1990
Segue-se, a itálico, com escrita por vezes engrossada e colorida pelo blogueiro, um artigo de Pacheco Pereira que merece divulgação na íntegra, e comentário do blogueiro na sequência:
À memória do Vasco Graça Moura
Não sei se são válidos ou não os argumentos jurídicos que discutem a data da aplicação efectiva do Acordo Ortográfico [AO], se nestes dias, ou em 2016. Isso não me interessa em particular, a não ser para registar a pressa suspeita em o aplicar contra tudo e contra todos. Mas uma coisa eu sei ao certo: é que o desprezo concreto do bem que ele pretende regular, a língua portuguesa, é evidente nessa mistura sinistra de inércia, indiferença e imposição burocrática com que se pretende obrigar os portugueses a escrever de uma forma cada vez mais abastardada.
Na sua intenção original, o Acordo pretendia ser um acto de política externa, uma forma de manter algum controlo sobre o português escrito pelo mundo todo, como forma de garantir uma réstia de influência portuguesa num conjunto de países que, cada vez mais, se afastam da centralidade portuguesa, em particular o Brasil. Se é um “acordo” é suposto que seja com alguém. No entanto, desse ponto de vista, o AO é um grande falhanço diplomático, visto que está neste momento em vigor apenas em Portugal, com promessas do Brasil e Cabo Verde, esquecimento em Moçambique, Guiné Bissau, S. Tomé e Timor-Leste, e recusa activa em Angola. Nalguns casos há protelamentos sucessivos, implementações adiadas e uma geral indiferença e má vontade. Para além disso, nenhuma implementação do AO, vagamente parecida com a pressão burocrática que tem sido feita em Portugal, existe em nenhum país, a começar por aquele que parecia ser o seu principal beneficiado, o Brasil. Ratificado ele foi, aplicado, não.
Mas com o mal ou a sorte (mais a sorte que o mal) dos outros podemos nós bem, mas ele revela o absurdo do zelo português num AO falhado e que nos isolará ainda mais. Onde os estragos serão mais significativos é em Portugal, para os portugueses, e para a sua língua. É que o Acordo Ortográfico não é matéria científica de linguistas nem, do meu ponto de vista, deve ser discutido nessa base, porque se trata de um acto cultural que não é técnico, e como acto cultural em que o Estado participa, é um acto político e as suas consequências são identitárias. Não me parece aliás que colha o historicismo habitual, como o daqueles que lembram que farmácia já se escreveu “pharmácia”, porque as circunstâncias políticas e nacionais da actualidade estão muito longe de ser comparáveis com as dos Acordos anteriores.
É um problema da nossa identidade como portugueses que está em causa, na forma como nos reconhecemos na nossa língua, na sua vida, na sua história e na sua proximidade das fontes vivas de onde nasceu: o latim. Não é irrelevante para o português e a sua pujança, a sua capacidade de manter laços com a sua origem no latim e assim comunicar com toda a riqueza do mundo romano e, por essa via, com o grego, ou seja, o mundo clássico onde nasceu a nossa cultura ocidental. Esta comunicação entre uma língua e a cultura que transporta é posta em causa quando a engenharia burocrática da língua a afasta da sua marca de origem, mesmo que essas marcas sejam “mudas” na fala, mas estão visíveis nas palavras. As palavras têm imagem e não apenas som, são vistas por nós e pela nossa cabeça, e essa imagem “antiga” puxa culturalmente para cima e não para baixo.
O AO é mais um passo no ataque generalizado que se faz hoje contra as humanidades, contra o saber clássico e dos clássicos, contra o melhor das nossas tradições. Não é por caso que ele colhe em políticos modernaços e ignorantes, neste e nos governos anteriores, que naturalmente são indiferentes a esse património que eles consideram caduco, ultrapassado e dispensável. Chegado aqui recordo-me sempre do “jovem” do Impulso Jovem aos saltos em cima do palco a dizer “ó meu isso não serve para nada”, sendo que o “isso” era a história. Esta é a gente do AO, e, como de costume, encontram sempre sábios professores ao seu lado, os mesmos que vêem as suas universidades a serem cortadas, em nome da “empregabilidade”, da investigação nas humanidades e em sectores como a física teórica e a matemática pura, teorias sem interesse para os negócios. “Ó meu, isso não interessa para nada!”.
Mas estamos em 2015 e hoje o português de Portugal está sitiado e numa situação defensiva. Não é no Brasil que o português está em risco, nem em Angola, Cabo Verde, Moçambique ou Timor. Aí os riscos do português são os riscos de sempre e vêm da extensão da colonização, da sua relação com as línguas autóctones, dos crioulos que gerou, e do modo como penetrou nas elites e no povo desses países, se é ou não a língua de cultura ou a língua da administração e do Estado. E não é certamente no Brasil que o português está na defensiva, bem pelo contrário, é no Brasil que o português está num momento particularmente criativo.
Quer se goste quer não, a locomotiva da língua portuguesa não é a academia portuguesa, mas a pujança do povo e da sociedade brasileira, a sua criatividade e dinamismo. E isso fará com que o português escrito no Brasil esteja sempre para lá de qualquer AO, como aliás aconteceu no passado e vai acontecer no futuro. É o mais fútil dos exercícios, até porque enquanto o português de Portugal for para o português do Brasil como o latim é para o português, ainda tem um papel. Se abastardamos o português de Portugal, nem esse papel teremos, a não ser escrevermos um “brasileiro” mais pobre que não serve de exemplo a ninguém.
A vitalidade do nosso português está nos seus grandes escritores, Miranda, Camões, Bernardes, Vieira, Herculano, Camilo, Eça, todos conhecedores do seu Virgílio, do seu Horácio, do seu Ovídio, mesmo do seu escolar Tácito, César ou Salústio. Todos lidos, estimados e estudados no Brasil, que por eles faz muito mais do que nós alguma vez fizemos, por exemplo, com Machado de Assis. E é também por isso, que a maioria dos escritores portugueses contemporâneos recusa o AO, como quase toda a gente que está na escrita e vive pela escrita e é independente da burocracia do estado. Todos sabem que o português permite todas as rupturas criativas, dos simbolistas ao Sena dos Sonetos a Afrodite Anadiómena – “E, quando prolifarem as sangrárias,/ lambidonai tutílicos anárias,/ tão placitantos como o pedipeste”, – ao “U Omãi Qe Dava Pulus” de Nuno Bragança. Criativamente a nossa língua vernácula suporta e bem tudo, menos que seja institucionalizada com uma ortografia pobre e alheia à sua história.
O futuro do português como língua já está há muito fora do nosso alcance, mas o português que se fala e escreve em Portugal, desse ainda podemos cuidar. É que é em Portugal que o português está em risco, está na defensiva, e o AO é mais uma machadada nessa defesa de último baluarte. É em Portugal que um Big Brother invisível, que se chama sistema educativo, retira todos os anos centenas de palavras do português falado, afastando das escolas os nossos escritores do passado e substituindo-os por textos jornalísticos. É em Portugal que uma linguagem cada vez mais estereotipada domina os media, com a substituição dos argumentos pelos soundbites, matando qualquer forma mais racional e menos sensacional de conversação. É em Portugal que formas guturais de escrita, nos SMS e nos 140 caracteres do Twitter, enviados às centenas todos os dias por tudo que é adolescente, ou seja também por muitos adultos, se associa à capacidade de escrever um texto, seja uma mera reclamação a uma descrição de viagem. É neste Portugal que, em vez de se puxar para cima, em nome da cultura e da sua complexidade, em nome da língua e da sua criatividade, em nome da conversação entre nós todos que é a democracia, se puxa para baixo não porque os povos o desejem, mas porque há umas elites que acham que a única pedagogia que existe é a facilidade.
E é neste Portugal que uma geração de apátridas da língua, todos muito destros em declamar que a “a nossa pátria é a língua portuguesa”, minimizam a nossa identidade e a nossa liberdade, que vem dessa coisa fundamental que é falar e escrever com a fluidez sonora do português, mas também com a complexidade da sua construção ortográfica. É como se estivéssemos condenados a escrever como se urrássemos em vez de falar.
*
Fonte: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/os-apatridas-da-lingua-que-nos-governam-1695778?page=-1
Isto é pôr a nu o perigo identitário que é a dita «lusofonia», entenda-se, o cenário em que Portugal vai a reboque de uma sua ex-colónia, coisa feia de ver, uma nação europeia a depender política e culturalmente de um país mestiço do terceiro-mundo. Quando a elite tuga está, tanto ou neste particular ainda mais que as suas congéneres europeias, insuflada pelo ideal universalista anti-racista, a tropicalice bastardizante que agora se vê no aborto ortográfico em nada surpreende.
13 Comments:
O nosso scenário orthográphico.
http://perolasdanovadireita.blogspot.com.br/2014/08/o-nosso-scenario-orthographico.html
Este "acordo" só nos afasta linguisticamente da Europa e das nossas ancestrais raízes linguístias europeias e nos aproxima do terceiro-mundo. Portugal está num processo de terceiromundização em todas os aspectos e nem a Língua escapa.
Começa a ser penoso para mim ler a imprensa portuguesa. Não falo da qualidade dos textos. Falo da ortografia deles. Que português é esse?
Quem tomou de assalto a língua portuguesa (de Portugal) e a transformou numa versão abastardada da língua portuguesa (do Brasil)?
A sensação que tenho é que estive em coma profundo durante meses, ou anos. E, quando acordei, habitava já um planeta novo, onde as regras ortográficas que aprendi na escola foram destroçadas por vândalos extraterrestres que decidiram unilateralmente como devem escrever os portugueses.
Eis o Acordo Ortográfico, plenamente em vigor. Não aderi a ele: nesta Folha, entendo que a ortografia deve obedecer aos critérios do Brasil.
Sou um convidado da casa e nenhum convidado começa a dar ordens aos seus anfitriões sobre o lugar das pratas e a moldura dos quadros.
Questão de educação.
Em Portugal é outra história. E não deixa de ser hilariante a quantidade de articulistas que, no final dos seus textos, fazem uma declaração de princípios: “Por decisão do autor, o texto está escrito de acordo com a antiga ortografia”.
A esquizofrenia é total, e os jornais são hoje mantas de retalhos. Há notícias, entrevistas ou reportagens escritas de acordo com as novas regras. As crónicas e os textos de opinião, na sua maioria, seguem as regras antigas. E depois existem zonas cinzentas, onde já ninguém sabe como escrever e mistura tudo: a nova ortografia com a velha e até, em certos casos, uma ortografia imaginária.
A intenção dos pais do Acordo Ortográfico era unificar a língua. Resultado: é o desacordo total com todo mundo a disparar para todos os lados. Como foi isso possível?
Foi possível por uma mistura de arrogância e analfabetismo. O Acordo Ortográfico começa como um típico produto da mentalidade racionalista, que sempre acreditou no poder de um decreto para alterar uma experiência histórica particular.
Acontece que a língua não se muda por decreto; ela é a decorrência de uma evolução cultural que confere aos seus falantes uma identidade própria e, mais importante, reconhecível para terceiros.
Respeito a grafia brasileira e a forma como o Brasil apagou as consoantes mudas de certas palavras (“ação”, “ótimo” etc.). E respeito porque gosto de as ler assim: quando encontro essas palavras, sinto o prazer cosmopolita de saber que a língua portuguesa navegou pelo Atlântico até chegar ao outro lado do mundo, onde vestiu bermuda e se apaixonou pela garota de Ipanema.
Não respeito quem me obriga a apagar essas consoantes porque acredita que a ortografia deve ser uma mera transcrição fonética. Isso não é apenas teoricamente discutível; é, sobretudo, uma aberração prática.
Tal como escrevi várias vezes, citando o poeta português Vasco Graça Moura, que tem estudado atentamente o problema, as consoantes mudas, para os portugueses, são uma pegada etimológica importante. Mas elas transportam também informação fonética, abrindo as vogais que as antecedem. O “c” de “acção” e o “p” de “óptimo” sinalizam uma correta pronúncia.
A unidade da língua não se faz por imposição de acordos ortográficos;
faz-se, como muito bem perceberam os hispânicos e os anglo-saxónicos, pela partilha da sua diversidade. E a melhor forma de partilhar uma língua passa pela sua literatura.
Não conheço nenhum brasileiro alfabetizado que sinta “desconforto” ao ler Fernando Pessoa na ortografia portuguesa. E também não conheço nenhum português alfabetizado que sinta “desconforto” ao ler Nelson Rodrigues na ortografia brasileira.
Infelizmente, conheço vários brasileiros e vários portugueses alfabetizados que sentem “desconforto” por não poderem comprar, em São Paulo ou em Lisboa, as edições correntes da literatura dos dois países a preços civilizados.
Aliás, se dúvidas houvesse sobre a falta de inteligência estratégica que persiste dos dois lados do Atlântico, onde não existe um mercado livreiro comum, bastaria citar o encerramento anunciado da livraria Camões, no Rio, que durante anos vendeu livros portugueses a leitores brasileiros. De que servem acordos ortográficos delirantes e autoritários quando a língua naufraga sempre no meio do oceano?
João Pereira Coutinho
«http://perolasdanovadireita.blogspot.com.br/2014/08/o-nosso-scenario-orthographico.html»
« E, em ambos os continentes, o "L" tem som de semi-vogal no final de sílabas ("mal" rima com "mau")»
Quais «ambos os continentes»? No europeu não é de certeza, que em Portugal não se fala assim...
Quanto à justificação final, é mais da mesma inacreditável falsificação do óbvio. Não há efectivamente maneira de explicar com clareza a uma criança porque é que nuns casos deve ler «cágado» e noutros deve ler «cagado», ou porque é que os espectadores não espetam necessariamente coisíssima nenhuma, pelo que chamar-lhes «espetadores» é garantidamente absurdo. Isto não é pois simplificar - além de abandalhar, é também complicar.
Aliás, faço notar que, completamente ao contrário do que diz o ponto 1 desse artigo, uma nova ortografia falsifica mesmo a oralidade, precisamente porque não posso ler «espectadores» se o que está escrito é «espetadores».
E pelo meio diz o autor que «os Portugueses é que alteraram a grafia!» Sendo isso verdade ou não, do que não há dúvida é que a língua portuguesa é dos Portugueses, pelo que não estão obrigados a levar em conta o que no Brasil se decide ou deixa de decidir.
« E também não conheço nenhum português alfabetizado que sinta “desconforto” ao ler Nelson Rodrigues na ortografia brasileira.»
E eu sei do meu caso, e dos casos de outros portugueses alfabetizados, que não gostam de ler livros em brasileiro.
Eu cá adoro como mini-saia passa a ser minissaia. Ou como pára-quedas passa a ser paraquedas.facepalm
Além do risco de o Benfica vir a ficar sem jogadores caso se comece a dizer «ninguém para o Benfica»...
É mais um annuncio de uma phase negra da nossa história.
Já faz parte da nossa Architectura moral, depois do attaque à Calligraphia, pouco restará.....
Estamos todos de acordo que este attentado à língua é aberrante mas já tive em consideração que a reforma de 1911 foi a que de facto tornou a língua portugueza uma língua feya? Prompto, porque razão não escreves na antiga graphia, anterior a 1911? É prohibido?
Ilustre amigo, o país está num abysmo, d'esta forma, estamos colocados numa synistra e triste situação de tragédia Egypsia.
Exhuberante, mas haja coherencia e escreva de forma correcpta, na antiga calligraphia.
ps:
fora de brincadeira. Eu concordo contigo, mas pá, a bastardia já tem escola neste país, isto já está muito sujo caturo, é demasiada imundice.
De qualquer forma, é de louvar a tua motivação, e por isso, os nossos agradecimentos.
« E, em ambos os continentes, o "L" tem som de semi-vogal no final de sílabas ("mal" rima com "mau")»
Quais «ambos os continentes»? No europeu não é de certeza, que em Portugal não se fala assim...
POIS VC´S ATÉ ZOAM E DIZEM BRASIU AS VEZES - OS UNICOS QUE FALAM O L COMO OS EUROPEUS E TUGAS SÃO OS DO INTERIOR DO RS E NEM TODOS
eheheheheheh
Caturo disse...
«E, em ambos os continentes, o "L" tem som de semi-vogal no final de sílabas ("mal" rima com "mau")»
Quais «ambos os continentes»? No europeu não é de certeza, que em Portugal não se fala assim...
Pois, também reparei logo nessa! Até o brasileiro Caps louco entende a piada que nós, portugueses, fazemos quando usamos o termo "brasíu". Portanto, é realmente muito estranho que esse "conhecedor" escreva uma coisa dessas.
"fora de brincadeira. Eu concordo contigo, mas pá, a bastardia já tem escola neste país, isto já está muito sujo caturo, é demasiada imundice."
Boa desculpa para um gajo aceitar o novo acordo ortográfico.palmas
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