sexta-feira, maio 16, 2014

SOBRE A MAIS FAMOSA PAISAGEM EMBLEMÁTICA SACRA DO LITORAL NACIONAL

Fonte: http://www.setubalnarede.pt/content/index.php?action=articlesDetailFo&rec=21350
A ocupação humana da vasta superfície de aplanamento do Cabo de S. Vicente/Ponta de Sagres remonta a sociedades de caçadores-recolectores nómadas. Aí foi identificado e escavado, defronte à Rocha das Gaivotas, no sítio de Armação Nova, pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, um estabelecimento mesolítico, economicamente especializado na exploração de sílex e no marisqueio. Este acampamento terá sido sazonal (Primavera/Outono) e recorrentemente frequentado entre cerca de 6500 e 5800 anos a. C. Nesse passado longínquo, como na actualidade, o perceve (Pollicipes pollicipes) foi especialmente apreciado e intensamente explorado mau grado a dificuldade da sua recolha em escarpas abruptas batidas por forte hidrodinamismo. A partir do registo arqueológico disponível não podemos contudo realizar incursões no pensamento religioso dessas populações tão estreitamente ligadas à Natureza. 
 A plataforma de abrasão marinha do Cabo de S. Vicente/Ponta de Sagres, talhada em calcários, constitui uma paisagem natural única pela sua imponência agreste e directo afrontamento com a infinitude oceânica, gerando um raro lugar sacro, onde a terra termina e o caos se inicia. Essa finisterra que vigia o sono do sol e cuja dobragem se revela cheia de dificuldades para a navegação à vela que busca o norte nos bons dias de verão e nortada, interpondo-se entre o cheiro mediterrâneo da figueira e o do atlântico pinheiro bravo, constitui um dos espaços míticos de maior longevidade do território português. Com efeito, este promontório talvez possa ser considerado o mais significativo património cultural da Costa Sudoeste portuguesa, muito embora a passagem do tempo histórico nem sempre seja de fácil apreensão. O carácter religioso do lugar é expresso arqueologicamente no Neolítico através da erecção de largas dezenas de menires, os quais criam o maior santuário pré-histórico de ar livre da costa portuguesa dedicado aos cultos de fertilidade e de ancestralidade, no fim do mundo conhecido, santuário onde se regulavam as rotinas da sucessão dos dias e das estações do ciclo agrícola, através da misteriosa fusão do sol com o oceano. 
Da vitalidade deste espaço sagrado e dos seus rituais durante a Proto-história temos abundantes notícias relatadas por escritores da Antiguidade, que permitem supor a existência de um santuário de ar livre onde se cultuaria o deus fenício e púnico Baal Hamon / Saturno. A "Ora Marítima", escrita por R. Avieno no século IV d. C., a partir de um périplo massaliota realizado no século VI a. C., descreve assim este acidente maior da nossa costa (v.v. 201-205): "Então lá onde declina a luz sideral emerge altaneiro o Cabo Cinético, ponto extremo da rica Europa, e entra pelas águas salgadas do Oceano povoado de monstros". Avieno continua, nos versos 215-217: "Segue-se um promontório, que assusta pelos seus rochedos, também ele consagrado a Saturno. Ferve o mar encrespado e o litoral rochoso prolonga-se extensamente". 
O carácter sagrado do lugar atravessa a Idade Média, dedicado ao culto de S. Vicente, mártir do século IV d. C. cujos restos mortais teriam, segundo a lenda, viajado de Valência até ao Cabo de S. Vicente do Corvo. Na "Igreja do Corvo", de acordo com descrição do geógrafo muçulmano Al-Idrisi, confluíam peregrinos cristãos, islâmicos e moçárabes. 
Também a aventura expansionista portuguesa dos séculos XV-XVI, que definitivamente atravessa a última fronteira oceânica, se reporta à mítica "Escola de Sagres", onde o Infante D. Henrique teria com a elite intelectual do seu tempo planeado a acção que levaria o Promontorium Sacrum a deixar de ser o Cabo do Mundo. 
Em suma, sendo o promontório do Cabo de S. Vicente/Ponta de Sagres uma paisagem geomonumental por excelência, e com reconhecidas evidências arqueológicas, é a sua qualidade de património imaterial que o eleva às escalas nacional e mundial. Este bem patrimonial poderá certamente alimentar significativos fluxos de turismo cultural ao longo de todo o ano se houver planeamento, competência e persistência na acção, tendo por base estratégias claras da mobilização do património a favor do desenvolvimento. 

1 Comments:

Blogger Caturo said...

Respostas:

http://gladio.blogspot.pt/2014/05/amanha-manifestacao-contra-tourada.html


16 de maio de 2014 às 23:38:00 WEST  

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