RELIGIOSO X IRRELIGIOSO
(...) o homem religioso assume um modo de existência específica no mundo, e, apesar do grande número de formas histórico-religiosas, este modo específico é sempre reconhecível. Seja qual for o contexto histórico em que se encontra, o homo religiosus acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, que aqui se manifesta, santificando-o e tornando-o real. Crê, além disso, que a vida tem uma origem sagrada e que a existência humana actualiza todas as suas potencialidades na medida em que é religiosa, ou seja, participa da realidade. Os Deuses criaram o homem e o Mundo, os Heróis civilizadores acabaram a Criação, e a história de todas as obras divinas e semi-divinas está conservada nos mitos.
Reactualizando a história sagrada, imitando o comportamento divino, o homem instala-se e mantém-se junto dos Deuses, quer dizer, no real e no significativo.
É fácil ver tudo o que separa este modo de ser no mundo da existência de um homem a-religioso. Há antes de tudo o facto de que o homem a religioso nega a transcendência, aceita a relatividade da “realidade”, e chega até a duvidar do sentido da existência. As outras grandes culturas do passado também conheceram homens a-religiosos, e não é impossível que esses homens tenham existido até mesmo em níveis arcaicos de cultura, embora os documentos não os registem ainda. Mas foi só nas sociedades europeias modernas que o homem a-religioso se desenvolveu plenamente. (...) O homem faz-se a si próprio, e só consegue fazer-se completamente na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo. O sagrado é o obstáculo por excelência à sua liberdade. O homem só se tornará ele próprio quando estiver radicalmente desmistificado. Só será verdadeiramente livre quando tiver matado o último Deus.
(...)
Mas o homem a-religioso descende do homo religiosus e, queira ou não, é também obra deste, constituiu-se a partir das situações assumidas por seus antepassados. Em suma, é o resultado de um processo de dessacralização. Assim como a “Natureza” é o produto de uma secularização progressiva do Cosmos obra de Deus, também o homem profano é o resultado de uma dessacralização da existência humana. Isto significa que o homem a-religioso se constitui por oposição ao seu predecessor, esforçando-se por se “esvaziar” de toda a religiosidade e de todo significado trans-humano. Reconhece-se a si próprio na medida em que se “liberta” e se “purifica” das “superstições” de seus antepassados. Por outras palavras, o homem profano, queira ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziado dos significados religiosos. Faça o que fizer, é um herdeiro. Não pode abolir definitivamente o seu passado, porque ele próprio é produto desse passado: é constituído por uma série de negações e recusas, mas continua ainda a ser assediado pelas realidades que recusou e negou. Para obter um mundo próprio, dessacralizou o mundo em que viviam os seus antepassados; mas, para chegar aí, foi obrigado a adoptar um comportamento oposto àquele que o precedia – e ele sente que este comportamento está sempre prestes a reactualizar-se, de uma forma ou outra, no mais profundo do seu ser.
Como já dissemos, o homem a-religioso em estado puro é um fenómeno muito raro, mesmo na mais dessacralizada das sociedades modernas. A maioria dos “sem religião” ainda se comporta religiosamente, embora não esteja consciente desse facto. Não se trata somente da massa das “superstições” ou dos “tabus” do homem moderno, que têm todos uma estrutura e uma origem mágico-religiosas. O homem moderno que se sente e se pretende a-religioso carrega ainda toda uma mitologia camuflada e numerosos ritualismos degradados. Conforme mencionamos, os festejos que acompanham o Ano Novo ou a instalação numa casa nova apresentam, ainda que laicizada, a estrutura de um ritual de renovação. Constata-se o mesmo fenómeno por ocasião das festas e dos júbilos que acompanham um casamento ou o nascimento de uma criança, a obtenção de um novo emprego ou uma ascensão social etc..
Poder-se-ia escrever uma obra inteira sobre os mitos do homem moderno, sobre as mitologias camufladas nos espectáculos que ele prefere, nos livros que lê. O cinema, esta “fábrica de sonhos”, retoma e utiliza inúmeros motivos míticos: a luta entre o Herói e o Monstro, os combates e as provas iniciáticas, as figuras e imagens exemplares Herói e o Monstro, os combates e as provas iniciáticas, as figuras e imagens exemplares (a “Donzela”, o “Herói”, a paisagem paradisíaca, o “Inferno” etc.). Até a leitura comporta uma função mitológica – não somente porque substitui a narração dos mitos nas sociedades arcaicas e a literatura oral, viva ainda nas comunidades rurais da Europa, mas sobretudo porque, graças à leitura, o homem moderno consegue obter uma “saída do Tempo” comparável à efectuada pelos mitos. Quer se “mate” o tempo com um romance policial, ou se penetre num universo temporal alheio representado por qualquer romance, a leitura projecta o homem moderno para fora de seu tempo pessoal e integra-o noutros ritmos, fazendo-o viver numa outra “história”. (...)
In O Sagrado e o Profano, de Mircea Eliade, 1957.
6 Comments:
E teria a religiosidade algo a ver com maior taxa de natalidade e maior disposição de lutar pelos ideais por exemplo? Pois pelo visto as nações europeias apesar de serem avançadas em tecnologia e em ciências estão com seus povos castrados e ameaçados pela mentalidade secularista-moderna.
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/0f/Religion_importance.PNG
Parece que o povo que melhor uniu a capacidade intelectual com a fé religiosa foram os judeus. Ou seria apenas por acaso que este tenha sido um dos povos mais fluentes e resistentes do mundo, apesar de serem uma minoria tão perseguida a séculos.
"É tão grande a fraqueza do género humano, tamanha a sua perversidade, que, sem dúvida, lhe vale mais estar subjugado por todas as superstições possíveis - desde que não tenham carácter assassino - do que viver sem religião. O homem sempre teve necessidade de um freio e, por ridículo que fosse sacrificar aos faunos, aos silvanos ou às náiades, era mais razoável e mais útil adorar essas imagens fantásticas da Divindade do que entregar-se ao ateísmo. Um ateu que fosse razoador, violento e poderoso, seria um flagelo tão funesto como um supersticioso sanguinário.
Quando os homens não dispõem de sãs noções acerca da Divindade, as ideias falsas suprem-lhes a falta, tal como nos tempos de desgraça se fazem negócios com moeda falsa quando falta a moeda boa. O pagão, se cometia um crime, temia ser punido pelos seus falsos deuses; o malabar teme ser punido pelo seu pagode. Em todo o lado onde há uma sociedade estabelecida, é necessária uma religião. As leis exercem vigilância sobre os crimes conhecidos, a religião exerce-a sobre os crimes secretos.
Mas, a partir do momento em que os homens chegam a abraçar uma religião pura e santa, a superstição torna-se não apenas inútil, mas muito perigosa. Não se deve tentar alimentar com bolotas aqueles que Deus se dignou alimentar com pão.
A superstição está para a religião como a astrologia está para a astronomia, a filha louca de uma mãe sábia. Essas duas filhas subjugaram durante muito tempo a Terra inteira".
Voltaire, in "Tratado Sobre a Tolerância"
"(Os números são) verdadeiros 'seres' carregados de uma profunda significação simbólica e metafísica. [...] O Número é aspecto do Nume. Nele arde o fogo secreto que une todas as coisas, visíveis e invisíveis, passadas presentes e futuras, daqui e de toda a parte. Número é também Nome: nome impronúnciável, indizível e secreto que a razão não pode inventar mas que inventa a razão. Como um campo magnético, só discernível quando a limalha de ferro lhe desenha a presença, o Número preexiste à forma e determina-a. Falar do Número é falar da cristalografia da presença, da potência, da ausência, de todos os possíveis. Número – assim o sabiam os Antigos – não é simples computo, nem mero calculo: é a arte da ciência e a ciência da arte; é a ordem secreta donde emanam todas as genéticas, todos os crescimentos; é a chave não espacial dos espaços, a chave atemporal dos tempos, o princípio do lugar, o pólo das polarizações, o diagrama fixo das evanescências; é o Sopro, o Pneuma, o Logos; é o que está e não está, o que é sem ser, a causa sem causa. E é ainda a sua própria consequência e todos os efeitos, o próprio transitório e o próprio evanescente."
Lima de Freitas
excelente texto.
será devidamente copiado e divulgado.
caturo, vc tbm tem problemas com o IE 9?
"Seguiu-se com ardor e com sucesso o projecto de aniquilar o nome, ou pelo menos de parar os progressos destas heresias detestadas. Algumas das leis penais aplicadas aos sectários foram copiadas dos éditos de Diocleciano contra os cristãos, e este método de con-versão foi aprovado pelos bispos que tinham gemido sob a opressão e reclamado então os direitos da humanidade." (DQ, p. 561)
Gibbons
«A natureza é, para o pagão, uma perfeita teofania: é reveladora do divino, pela ordem e pela beleza. Os pitagóricos ensinaram aos Gregos que tudo no mundo é concebido com número e medida, que é por isso mesmo que merece ser chamado Cosmos e que, como Cosmos, como universo organizado, é decerto obra de algum divino geómetra. "É no seio deste vasto mundo, criação de um demiurgo pleno de arte e sabedoria, teatro de inumeráveis maravilhas", escreve Dion Crisóstomo, "que os Imortais em pessoa iniciam o género humano, dançando à sua volta, se assim posso dizer, a dança sagrada no coração da noite, do dia, da luz e das estrelas. Em presença de um tal espectáculo, como pode a espécie humana deixar de distinguir o coriféu que governa o coração de todas as coisas, que governa o Céu inteiro, que dirige o Cosmos como um sábio piloto dirige uma nave sabiamente construída?"
A natureza é como um templo, plena de símbolos e signos, de murmúrios e vozes que os poetas e os adivinhos interpretam. No marulhar das vagas escutam o apelo de Nereidas e Sereias, e no som dos cítisos a dança ligeira das Dríades.
(...)
Não havia nascente que não tivesse a sua ninfa, nem espelho de água onde não se debruçasse o sorriso de um Deus Silvano. Cada Deus tinha um pássaro favorito e uma árvore que Lhe era consagrada: Atena, a pálida oliveira; perto das cidades, Apolo, Deus do Sol, habitava um bosque de loureiros, e Diana, filha da Terra, um bosque de ciprestes. Cada flor falava uma linguagem. As rosas e as violetas acompanhavam os actos solenes da vida e coroavam as horas agradáveis: eram os inseparáveis ornamentos das alegrias da família e dos actos pios da religião. A terra era a Boa Mãe que simbolizava a actividade exuberante da natureza sob a veste cantante das estações. E assim os homens e os seus lares, a natureza e as suas flores, os Deuses e o Seu poder, os Deuses protectores, familiares e alegres do Paganismo, concorriam para a alegria de viver (...)
Ártemis de mil tetas que incansavelmente incentiva as gerações à vida e ao trabalho. As forças do céu e da terra, infatigáveis obreiras que tecem a veste brilhante da Divindade no tear cantante do tempo, esses Deuses do Paganismo, cada um encarnando um apelo estético do Cosmos... (...)»
In «O Conflito Entre o Cristianismo Primitivo e a Civilização Antiga», Louis Rougier, editora Vega, pág. 97 e seg..
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