«VIRIATO», DE TEÓFILO BRAGA

Recomendo mui vivamente que se aproveite o agradável e enriquecedor evento da Feira do Livro para se adquirir o magnífico e injustamente pouco conhecido «Viriato», de Teófilo Braga (1904).
Obra de ficção histórica escrita com grandiloquência épica e patriótica, é rica no que respeita à referência a tradições folclóricas, ou não fosse o seu autor um dos grandes antropólogos e etnógrafos da cultura contemporânea portuguesa, responsável por uma ampla e monumental recolha e registo de lendas, quadras, ditos, usos e costumes populares portugueses. E nem o subtil pendor anti-religioso, derivação usual do anti-clericalismo que marcou a sua época, o impede de pelo menos referir uma das mais bem conhecidas Deidades da Hispânia indo-europeia, que é Neton, Deus da Guerra.

É igualmente rica num género de fantasia heróica baseada num profundo conhecimento da cultura antiga da Europa Ocidental, nomeadamente da celta, chegando neste aspecto a incluir na narrativa certos elementos e pormenores que só um verdadeiro estudioso, assaz familiarizado com a matéria literária céltica, se lembraria de referir. Preenchendo, na medida das suas possibilidades, as lacunas no que ao conhecimento dos Lusitanos diz respeito, Teófilo Braga atribui a estes ancestrais o conhecimento de ciências druídicas, um sacerdócio indígena afim do druídico e até a posse dos segredos dos oghams, espécie de letras mágicas célticas miticamente criadas por Ogma, Deus da Eloquência e da Batalha, letras estas que são exclusivas, tanto quanto a historiografia oficial diz, dos Goidélicos da verde Eriu...
«Alfabeto» ogâmico, ou Beith-Luis, em que cada letra corresponde a uma árvore; rochedo com gravações ógmicas. Tanto quanto se sabe até agora, nada disto existe fora da Irlanda.

É todavia verosimilhante a ideia de que os Lusitanos sacralizassem certas e determinadas rochas, tal como os povos célticos continentais faziam, e tal como o Povo Português das aldeias faz ainda.

Particularmente interessante, e, mutatis mutandis, supreendentemente actual, é a teoria do autor a respeito da identidade étnica dos Lusitanos, míticos ancestrais dos Portugueses: tal como Martins Sarmento, Teófilo Braga também é da opinião de que a gente de Viriato, e de todo o ocidente ibérico, descende dos antigos e nebulosos Lígures, povo de cabelo e olhos castanhos que, vindo do norte ou do leste gelado, teria arribado à Ibéria muito antes dos Celtas, mais altos e mui loiros (e mais conflituosos, segundo o autor).
A Ciência actual considera os Lígures como um povo indo-europeu relativamente mal conhecido, sito no noroeste de Itália e sul de França, parente dos Celtas, mas cuja presença maciça na Ibéria não está de modo algum comprovada. Não se sustenta por isso a tese da ascendência lígure dos Lusitanos; todavia, o que muitos especialistas contemporâneos afirmam é, no essencial, o mesmo que Sarmento e Braga proclamavam: que os Lusitanos seriam filhos duma antiga migração indo-europeia, ou proto-indo-europeia, que, muito antes das migrações célticas, teria atingido o extremo ocidente europeu. É a partir daí notório o desvelo que Teófilo Braga põe em salientar a alegada pureza de sangue lígure-lusitana das gentes da Hispânia atlântica, bem como o contraste, de cunho político anti-iberista, que se esforça por exibir no que aos Lígures e Íberos diz respeito, opondo-os em tudo - os primeiros destacam-se pela sua sobriedade, dureza e amor à liberdade, os segundos pela reverência que sentem perante o poder e a majestade, daí que estes tivessem pactuado, quase desde sempre, com Roma, enquanto aqueles sempre lhe opuseram formidável e indómita resistência. Não deixa até de ser pitoresco o modo como na obra se acaba por atribuir aos três traidores certos e determinados tipos físicos «racialmente» estranhos aos Lusitanos (um assemelha-se aos Berberes, outro aos Celtas, outro aos Íberos).

Paralelamente, uma análise política e sociológica do texto não deixará de encontrar aí frequentes e (pouco) subtis invectivas contra a Monarquia e contra o Iberismo, e contra a dependência relativamente a uma grande potência estrangeira (a monarquia portuguesa apoiada pela coroa inglesa...), pondo na boca dos três que traíram Viriato (Andeca ou Audax, Ditalcon e Minuro) o apelo ao esquecimento das origens étnicas e à submissão a uma autoridade política imperial... e compreende-se que assim seja, tendo em conta que o autor veio a ser proeminente homem da Política nesta conturbada época, o fervilhante e conflituoso dealbar do século XX.

Quem quiser dar uma vista de olhos a algumas das passagens da obra, dirija-se a esta página e locuplete-se...