segunda-feira, agosto 16, 2004

UM DOS MAIORES MITOS DO OCIDENTE

Recomendo vivamente o novo filme «Rei Artur». Pretende dar uma visão realista da lenda arturiana, centrada na figura de um bretão meio romano que, liderando os Bretões, fez frente aos invasores germânicos Anglos e Saxões. Como é óbvio, remava contra a maré, uma vez que os seus descendentes acabaram por ser derrotados: assim nasceu a Inglaterra, nação anglo-saxónica, que acabou por submeter politicamente toda a Britânia e, mais tarde, também a Irlanda. Ainda assim, a gente de Artur está viva, representada por Gales, pela Cornualha e pela Bretanha (noroeste de França), mesmo que nenhuma destas nações seja independente.

Voltando à película, é de saudar o realismo histórico assumido com grandiosidade - contrastando com certo neo-realismo que gosta de achincalhar o passado.
É excelente ver uma obra na qual se faz notar a diferença étnica entre os grupos envolvidos, ao invés da sensaboria habitual de mostrar Artur a combater inimigos que não se sabe bem o que são e que em nada diferem dos súbditos de Camelot.

Saliento com agrado o pormenor da língua falada pelos Woads, povo que eu só conhecia pelo nome de «Pictos»(termo romano derivado do facto de esse povo se pintar, de azul) e de «Cruithin»(termo céltico).
No entanto, não compreendo muito bem como é que no filme se trata os Pictos como sendo Bretões, quando, na realidade, os Pictos sempre foram bárbaros localizados a norte da muralha de Adriano (isto é, na Escócia) inimigos mortais dos Bretões romanizados, que viviam na actual Inglaterra e no País de Gales. Etnicamente, há dúvidas a respeito da identidade dos Pictos: não se sabe se eram Celtas muito arcaicos, se Indo-Europeus pré-celtas, ou se nem sequer eram Indo-Europeus - é a mesma polémica que existe a respeito dos Lusitanos, com os quais tinham outros pontos em comum, tais como a sua excepcional ferocidade, assaz temida pelos Romanos, e a sua habilidade na guerra de guerrilhas, embora por métodos diferentes.
Merlin, apesar de vestido com roupas que parecem trapos, mantém a sua dignidade.
A figura da mulher guerreira (neste caso, Guinevere) é valiosa, exemplificando a bravura da mulher céltica, descrita por César (in De Bello Gallico, ou A Guerra das Gálias)quando desembarcou na Britânia, bem como por Estrabão (in Geographia III), quando fala das mulheres dos Galaicos (nação irmã da Lusitânia), que combatiam ao lado dos seus homens.

Os Saxões, pareceram-me bem representados. Gostei de ouvir o que me pareceu ser uma frase ecoada pelas hordas germânicas, qualquer coisa como «Slogt da fiend» (escrevo-a como a ouvi, mas à portuguesa...), hipoteticamente equivalente ao Inglês «Slaught the fiends» («Chacinem os inimigos»).
O líder supremo saxão tinha um certo estilo atemorizador e algo magnético, como dizem os gajos do make-off do filme, só é pena falar um bocado à mafioso, com voz baixinha asmática e ameaçadora. Um preto com cabeleira loira, um branco com carapinha e um guerreiro germânico de há mil e quinhentos anos a falar à gangster italo-americano do século XX, não ficam nada bem.
Apreciei o momento em que o líder saxão diz a um dos seus guerreiros para não misturar o seu sangue com outro povo. Claro que, numa época politicamente correcta como a actual, isto tinha de ser posto na boca do mau da fita, mas enfim, foi bom ouvir/ler esta recomendação. Faz lembrar o «Regresso do Rei», de Nikolai Tolstoi, obra de ficção histórica em que os Saxões referem os Celtas da Britânia pela designação de «escuros Bryttas».

Os cavaleiros de Artur não estavam nada mal. Nunca ouvi dizer que algum importante guerreiro britânico fosse de origem sármata, mas tudo bem. Até é verosímil, tendo em conta que os Sármatas, povo iraniano (ariano, do mesmo ramo dos Alanos, que por essa altura vieram parar à Lusitânia, onde estiveram por dez anos) cujos cavaleiros eram famosos pela sua perícia, foram certamente utilizados como mercenários pelas legiões romanas.
Só é pena que um ou outro dos cavaleiros tivesse uma postura tão marcada pela copice-de-leite. Por mais ferozes e bélicos que se façam, o chazinho queque vem-lhes ao de cima. Não é aceitável, por exemplo, que Lancelot diga - com aquela rapidez e boa dicção típicas de mulheres e de rapazes muito bem educados por mulheres - que, se morrer, não quer ser enterrado naquele «sad little cemitery».

Ora um gajo de armas e sangue nas mãos não diz «sad little cemitery».

Quem diz «sad little cemitery» são os jovens adultos anglo-saxónicos com uma boa educação literária que comem scones à hora do chá.

A ideia de fazer de Artur um bretão filho de um romano (versão matriarcal, adoptada pela ideologia do filme), ou um romano filho de uma bretã (ponto de vista patriarcal...), está simbolicamente certa. Efectivamente, Artur, Artorius (nome romano) ou Art Vawr (Urso Celeste, nome galês), comandou um povo céltico romanizado. É de certo modo a mesma situação dos Portugueses, que são essencialmente produto da fusão entre Romanos e indígenas hispânicos pré-Romanos, que seriam Celtas ou pelo menos Indo-Europeus arcaicos.
O nome de Artur é significativo: vem provavelmente, não do Latim, mas do Céltico - «Art» é palavra céltica que significa «Urso», e o Urso seria, de acordo com alguns autores, o símbolo da realeza entre os Celtas (lembrar Artio, Deusa gaulesa possivelmente ligada à soberania). Artur tornou-se, no imaginário medieval, o símbolo do rei perfeito, liderando um reino perfeito - Camelot - rodeado de nobres guerreiros, exemplos de coragem e virtude: Galahad, ou Galaaz, o cavaleiro do Graal, foi modelo pelo qual D. Nuno Álvares Pereira guiou a sua conduta.

Não é de estranhar que as personagens Nimue e Morgana tenham sido excluídas do filme, visto que seriam, não propriamente personagens históricas, mas sim Deusas que, no imaginário cristianizado, se tornaram simples feiticeiras.

Foi bom constatar a completa ausência de qualquer actor negro ou amarelo no filme todo. Numa época em que o politicamente correcto se mostra cada vez mais inquisitorial, é especialmente saboroso assistir a obras cinematográficas que não têm gente extra-europeia a fazer papéis importantes com o objectivo de combater o «racismo!!!» - lembrar o Robin dos Bosques interpretado por Kevin Costner, que tinha ao seu lado um amigo de armas mouro, que era negro, e que dava lições de bom senso aos tolos ingleses, pois...

Lamento porém que, de uma ponta à outra do filme, não se tenha ouvido um só nome de qualquer Divindade céltica, germânica ou sármata. Numa película que quer representar uma época em que a crença religiosa era em toda a parte dominante, é estranho que não se fale nunca em teónimos de qualquer espécie. Satisfez-me, de qualquer modo, ver que o tom geral das conversas fosse favorável ao Paganismo e adverso ao fanatismo cristão...

2 Comments:

Blogger Caturo said...

Muito obrigado pelo elogio e, sobretudo, pelas informações que aqui deixou.

2 - Se os da Ibéria foram rechaçados pelos Celtas, porque é que os Milésios são a raça triunfante por excelência, considerados como os autênticos representantes dos Goidélicos ou Gaélicos?

3 - A tua teoria sobre o motivo pelo qual os Celtiberos recuaram é interessante. Como se justifica?


Saudações.

17 de agosto de 2004 às 10:18:00 WEST  
Blogger Caturo said...

Viriato, aquela parte do preto com cabeleira loira e do branco com carapinha, é de um anúncio antigo, de há quase trinta anos, de publicidade aos «Restauradores Olex!», produto para o cabelo...:)
Sobre a semelhança entre os Hunos e os Sármatas, não surpreenderia, dado que os Sármatas viviam no espaço entre a Europa Oriental e a Ásia Ocidental, região pela qual passaram os Hunos, invasores orientais.
Obrigado pelo elogio:).

17 de agosto de 2004 às 11:59:00 WEST  

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