quarta-feira, julho 29, 2020

CONTO POPULAR - A BICHA DE SETE CABEÇAS

"Era uma vez um homem que vivia com uma sua irmã em muito boa amizade; vem uma má d'uma vizinha e disse-lhe: «Você aqui cheiinha de trabalho e seu irmão para ali a comer na venda mais uma amiga.» 
«Não diga tal; isso é falso.» 
A vizinha veio para onde ao irmão e encontrou-o a roçar mato e disse-lhe: «Você aqui mortinho de trabalho e sua irmã em casa com um amigo a comer bons bocados.» 
O irmão chegou a casa; vestiu-se com o fato melhor, pegou n'uma espingarda ás costas e levou tres carneiros, tres broas de pão e tres vintens em dinheiro, que dinheiro não tinha mais. Pelo caminho pegou nos carneiros e no pão e deu tudo a um pobre que encontrou que era Nosso Senhor e elle lhe fez dos carneiros tres cães que filavam a tudo que encontravam. Era muito feliz na caça; todos os caçadores o chamavam para irem á caça com elle.

Um dia chegou a um monte e estava lá uma rapariga e assim que o viu disse-lhe: «Fuja, meu tio, que vem lá a bicha de sete cabeças e mata-o». 
«Que bicha será essa a que eu não posso atirar?» 
«É uma bicha que todos os caçadores teem andado a ver se a podem matar e não a matam e elle todos os dias come uma pessoa que vem ao monte, se lhe cae a sorte n'ella. Eu era filha do rei e caiu-me a sorte.» 
Elle disse: «Não tenho medo; eu hei de matal-a que trago aqui tres cães que filam a tudo.» 
N'isto chegou a bicha que a duas leguas de distancia já se ouvia rugir.

Chegou a bicha e elle assogou-lhe os cães e matou-a. 
Depois então a menina disse-lhe: «Venha commigo que ha de ter um grande premio de meu pae, que até disse que se algum homem matasse a bicha me dava a elle em casamento». 
«Eu agradeço, mas não quero». 
«Então venha commigo que meu pae dá-lhe um grande premio». 
«Eu não preciso de nada». 
Ella então tomou um annel d'ouro e deu-lh'o e elle acceitou-o.

O homem foi á bicha e cortou-lhe as linguas das sete cabeças e embrulhou-as no lenço, que metteu no bolso.

Isto constou por toda a parte e como o rei tinha dado a palavra que dava a filha a quem matasse a bicha, um preto que soube d'isto foi ao monte, cortou as cabeças á bicha e foi com ellas ao rei, dizendo que tinha morto a bicha e que lhe désse a filha. 
«Minha filha não tens remedio senão casar com o preto.»
«Meu pae quem matou a bicha foi um homem muito bonito que tinha tres cães e disse que não queria o premio, nem casar commigo e até eu por lembrança lhe dei o meu annel».
«Não tens remedio senão casar com o preto, pois, elle é quem trouxe as cabeças.»

N'isto estava o casamento preparado e o homem que matara a bicha andava no monte á caça com uns caçadores e estes contaram que a filha do rei ia casar com o preto, e disseram: «Que pena aquelle ladrão ir casar com aquella rapariga.» 
O homem: «Então que casamento é esse?» 
«Foi um preto que matou a bicha de sete cabeças e o rei tem de dar a filha, como promettera, a quem matasse a bicha. A pobre menina diz que não foi o preto que matou a bicha e todos os dias reza a Santo Antonio que lhe depare o homem que matou a bicha.»

O homem calou-se e ao outro dia caminhou e foi a casa do rei. Chegou lá e disse que queria fallar a sua magestade; o rei, como estava embebido com o casamento do preto, não lhe quiz fallar. O homem repetiu outra vez o pedido e disse que, se elle não lhe queria fallar, que ao menos lhe fallasse a princeza d'uma janella sacada, que elle ia por causa da bicha das sete cabeças. N'isto o rei que soube que o homem que ia lá a troco da bichinha, mandou-lhe dizer que lhe fallava e appareceu mail-a filha e esta apenas lhe botou os olhos disse: «Oh meu pae! aqui está o homem que matou a bicha.» 
Então disse o rei: «O que me contaes da bicha? Como é que aqui me appareceram as sete cabeças da bicha?» 
«Como a bicha tinha sete cabeças devia ter sete linguas e ellas aqui estão.» 
O rei desembrulhou o lenço e viu as linguas; foi ver as cabeças e não lhe viu nenhuma; mandou matar o preto e disse ao que matou a bicha: «Então ahi tendes a minha filha». 
«Real Senhor, eu agradeço muito; mas não quero casar».
«Pois, emfim, pedi o que quizerdes que eu tudo vos dou».
«Real Senhor, eu nada preciso que tenho aqui tres cães que faço quanto eu quero, entro onde quero, vou onde quero e acabo o que quero.» 
O rei então deu-lhe uma medalha e as maiores honras da sua côrte."
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Fonte: https://pt.wikisource.org/wiki/Contos_Populares_Portuguezes/A_bicha_de_sete_cabe%C3%A7as

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Facilmente se misturam, na memória popular, elementos modernos, como a espingarda, com mitos que eventualmente remontam à noite dos tempos, tendo este monstro alguma semelhança aparente com a Hidra de Lerna (que tem nove em vez de sete cabeças), que Hércules matou num dos seus trabalhos. Quanto aos três cães, repentinamente lembram o cão de três cabeças do Hades, Cérbero. Não deixa entretanto de ser quase surpreendente que uma história na qual o preto é o mau (menor) da fita chegue assim à Internet, sem censura nem nada, até parecem outros tempos, pré-Inquisição antirra, que eventualmente até podem retornar...

Recomendo, já agora, que quem puder veja «A Bicha de Sete Cabeças», telefilme português de 1978, exibido na Vernes (dia 24 de Julho) passada no canal RTP Memória, «Realizado para a RTP, fazendo parte da série "Contos Tradicionais Portugueses".
Junto à Ribeira de Silvalde, nas proximidades de uma ponte que foi romana e que já não o é por obras e vontade da gente de outros tempos, existia um campo e dele tirava sustento uma mulher, com a força do seu suor e trabalho. E assim ela estava, como era hábito dos dias, quando viu em sua direcção aproximar-se bicho nunca visto, que só de cabeças tinha muitas, e de cujas intenções a mulher fez tal juízo que logo deitou a correr no meio de grande gritaria.»

https://www.rtp.pt/programa/tv/p38558