terça-feira, março 31, 2020

SOBRE A ACTUAÇÃO DA CHINA NO CONTEXTO DA PANDEMIA

O Partido Comunista da China é a "ameaça nº 1 dos nossos tempos", salientou de maneira perspicaz o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, em Janeiro. Naquela altura, o coronavírus já se estava a espalhar por toda a China e pelo mundo. O esforço do Partido Comunista de esconder a epidemia provou que Pompeo estava mais do que certo. "A minha preocupação é que esse encobrimento, essa guerra de desinformação a ser promovida pelo Partido Comunista da China, ainda esconda do mundo as informações necessárias para que possamos evitar que novos casos ou algo parecido se repitam", ressaltou Pompeo esta semana.
Se a China tivesse reagido ao surto três semanas antes, 95% dos casos de coronavírus poderiam ter sido evitados segundo um estudo conduzido pela Universidade de Southampton. Naquelas três semanas, a China estava ocupada sonegando a verdade. De acordo com Steve Tsang, director do SOAS China Institute da Universidade de Londres, "foi o encobrimento do Partido Comunista nos primeiros dois meses, mais ou menos, que criou as condições necessárias para gerar a pandemia global".
No entanto, os líderes chineses, ao que tudo indica, estavam obcecados única e exclusivamente com a sustentabilidade do regime totalitário, ávidos em abafar qualquer crítica, a antiga praxe. Desde Janeiro, a evidência do encobrimento deliberado do coronavírus da China em Wuhan virou matéria de domínio público. O governo chinês censurou e prendeu médicos e denunciantes corajosos que tentaram soar o alarme. Jack Ma, um dos empresários mais ricos da China, revelou recentemente que a China abafou no mínimo um terço dos casos de coronavírus.
A China conseguiu atingir o patamar de super-potência porque adoptou práticas económicas do Ocidente. Nenhum país conseguiu um progresso económico e social tão rápido durante um período tão prolongado. Contudo, as esperanças depositadas pelo Ocidente no mercado chinês também alimentaram uma miragem perigosa. Nós, no Ocidente, achámos que uma China modernizada com um PIB em crescimento também se iria democratizar e passaria a respeitar a transparência, o pluralismo e os direitos humanos. Contrariando as expectativas, a miragem transformou-se em desastre e diante dos nossos olhos a China foi virando um "Estado ainda mais totalitário"
A natureza do regime chinês, a proibição da imprensa livre e toda e qualquer voz crítica, o domínio absoluto dos actores sociais, espirituais e económicos pelo Partido Comunista, o encarceramento de minorias e o rolo compressor que passa por cima da liberdade de consciência, também contribuem para o surgimento deste desastre de saúde pública. O custo, em termos de vidas humanas e do PIB mundial, é incomensurável.
A cumplicidade do governo chinês no tocante à pandemia é a oportunidade para o Ocidente reavaliar os seus laços com Pequim. De acordo com Guy Sorman, especialista franco-americano na China:
"assim como os idiotas úteis, o que nós fizemos não foi só ajudar o Partido a prosperar, pior do que isso, deixámos pelo caminho os nossos valores humanitários, democráticos e espirituais."
"Está na hora", salientou o colunista americano Marc A. Thiessen, de "imunizar a nossa economia e segurança nacional da nossa dependência de um regime trapaceiro".
A China está a travar duas guerras de informações: uma no exterior e outra interna para a sua população, ambas lideradas pelas autoridades chinesas encabeçadas pelo presidente Xi Jinping. Ao que tudo indica, eles vêem o Ocidente como fraco e submisso. E somos mesmo.
A China parece acreditar que se encontra em franco crescimento, ao mesmo tempo que o Ocidente está em franco declínio. "Encontramo-nos no que os Alemães chamam Systemwettbewerb, uma "competição de sistemas", de um lado as democracias liberais, do outro o capitalismo estatal autoritário da China, que está gradativa e incessantemente a projectar as suas pretensões absolutas de poder para além das suas fronteiras", ressaltou Thorsten Benner, co-fundador e director do Global Public Policy Institute, em Berlim. A Guerra Fria com a Rússia foi mais transparente.
"Estávamos diante de um antagonista nas esferas ideológicas e de segurança, mas não um concorrente na área económica. Havia um muro chinês entre as economias do Ocidente e da União Soviética. Hoje confrontamo-nos com um oponente que é um poderoso concorrente na economia, astutamente envolvido na política económica do Ocidente. Concomitantemente também dependemos da cooperação da China em questões trans-nacionais, como mudanças climáticas e pandémicas. O sistema estatal capitalista e autoritário da China, juntamente com suas ambições hegemónicas, são de longe o desafio estratégico mais difícil com que o Ocidente já se deparou".
Segundo o historiador Niall Ferguson, "hoje a China representa um desafio económico jamais visto em relação à União Soviética". A União Soviética jamais poderia contar com um sector privado dinâmico, a exemplo da China. Em determinados segmentos, como os de tecnologia, a China já ultrapassou os Estados Unidos. E não pára por aí, a economia soviética nunca esteve tão intimamente integrada com o Ocidente como a chinesa, a segunda maior do mundo. O governo de um só partido totalitário da China dá mais liberdade aos indivíduos, pelo menos no presente momento, do que a União Soviética. A epidemia de coronavírus deve-se, de facto, em parte à liberdade de ir e vir dos cidadãos chineses.
A China também conseguiu convencer em grande medida o Ocidente de que não é inimiga. O objectivo de Pequim parecia ser seduzir o Ocidente e o restante planeta para a sua órbita económica e ideológica. A China abriu mercados no Ocidente, enquanto oferecia ao seu próprio povo uma espécie de pacto com o diabo: desistam das vossas ideias e princípios e vocês desfrutarão de melhores condições de vida material e segurança social. Entretanto, a China tornava-se num gigante industrial e tecnológico, feito que nem em sonho a União Soviética poderia alcançar.
Por exemplo, vejamos o caso da indústria farmacêutica. Segundo Yanzhong Huang, senior fellow em questões de saúde do Conselho de Relações Exteriores, as empresas chinesas fornecem aos EUA mais de 90% dos antibióticos, vitamina C e ibuprofeno, além de 70% de paracetamol e de 40 a 45% de heparina consumidos no país. Os EUA nunca dependeram dessa maneira da União Soviética.
Num artigo no Xinhua, um dos órgãos que reflecte a posição oficial do Partido Comunista da China, Pequim ameaçou suspender as exportações de produtos farmacêuticos, que na sequência "mergulharia os EUA no poderoso mar do coronavírus". Na realidade o artigo do Xinhua levava a seguinte manchete: "seja ousado: o mundo deve à China um obrigado".
Tucker Carlson, âncora da Fox News, estava certo em desferir violentas críticas à elite americana por ela vender o país aos interesses económicos da China.
Tudo indica que a liderança chinesa acredita que é impossível desafiar uma potência que vende ao seu país a maioria dos seus fármacos vitais.
A Itália, país duramente castigado pela pandemia de coronavírus da China, agora é o pivô de uma estratégica campanha de propaganda chinesa. Pequim está enviando médicos e suprimentos para Itália e também para a restante Europa. Na Itália é possível ver cartazes com os dizeres : "Força China!" ("Forza China!") A China almeja comprar o nosso silêncio e a nossa cumplicidade. Lamentavelmente, é isso mesmo que está a acontecer. Em Fevereiro último, enquanto algumas autoridades italianas (de Direita) instavam o primeiro-ministro Giuseppe Conte a pôr em quarentena as crianças em idade escolar no norte do país, aquelas que acabavam de voltar de férias na China, as autoridades do primeiro escalão de Itália estavam ocupadas passando a mão na cabeça dos Chineses. O Presidente de Itália, Sergio Mattarella, o Ministro da Cultura, Dario Franceschini e o Ministro de Relações Exteriores, Luigi Di Maio, patrocinaram um concerto em Roma em homenagem à "amizade ítalo-chinesa". O Presidente da China, Xi Jinping, agradeceu calorosamente.
A China não está a ajudar nesta altura em nome da "solidariedade". O regime chinês quer-se sobressair como salvador do mundo. No início da pandemia Pequim não dava a mínima importância à vida do seu próprio povo: estava ocupada demais censurando notícias.
"Escondida atrás das declarações de solidariedade, a China planeia comprar as nossas cambaleantes empresas e infraestrutura", segundo o Bild, jornal de maior circulação da Alemanha. Itália foi o primeiro país do G-7 a assinar o programa global de investimentos da China, acordo que suscitou preocupação nos EUA e com razão. A China parece estar a postos para continuar a sua expansão na economia e nos interesses estratégicos de Itália.
Parece que o Partido Comunista da China também está em guerra com o livre fluxo de informações na arena internacional. Na mais abrangente expulsão de profissionais de média na China desde a morte de Mao Tsetung, o país expulsou recentemente jornalistas americanos. Pequim também procura jogar a culpa pela pandemia nos EUA, ao dizer que o coronavírus apareceu pela primeira vez com os militares dos EUA em Wuhan. Lijian Zhao, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, postou mensagens nesse sentido nas redes sociais chinesas e no Twitter. A crise do coronavírus virou campo de batalha para a propaganda chinesa.
O paradoxo é que o Global Times, um veículo de imprensa do Partido Comunista da China, espalha fake news contra os EUA no Twitter, que é proibido na China. Enquanto isso, o Twitter tirou do ar o site Zero Hedge, por publicar um artigo que liga um cientista chinês ao surto de coronavírus. Lamentavelmente o Twitter também salientou que o Partido Comunista da China não viola as leis que tratam das redes sociais, ao disseminar mentiras contra os EUA.
Já há alguns anos, mais precisamente em 2013, uma directriz confidencial do Partido Comunista da China conhecido como Documento nº 9 postulava a rejeição de sete concepções ocidentais, tais como: "democracia constitucional do Ocidente", "valores universais" dos direitos humanos, noções de independência dos média e participação cívica inspiradas no Ocidente, "neoliberalismo" fervorosamente pró-mercado e críticas "niilistas" ao passado questionável do Partido. Faz parte dos objectivos a serem combatidos as "embaixadas, consulados, plataformas de média e organizações não governamentais de países ocidentais". Huang Kunming, chefe de propaganda do Partido, ataca "alguns países ocidentais que usam as suas privilegiadas tecnologias e domínio de discurso acumulados por anos a fio para pregar os assim chamados "valores universais"". O Ministro da Educação da China, Yuan Guiren, ex-presidente da Universidade Normal de Pequim, também deu a sua contribuição: "jamais permita que livros didácticos que promovam valores ocidentais apareçam nas nossas salas de aula".
Em discursos e documentos oficiais, o Presidente Xi fala sobre a luta entre o "socialismo com características chinesas" e as "forças ocidentais anti-chinesas" com as suas ideias "extremamente mal-intencionadas" de liberdade, democracia e direitos humanos. O Ocidente parece ser o seu alvo. De acordo com um novo estudo conduzido pelo International Republican Institute:
"O Partido Comunista da China... emprega um singular conjunto de tácticas nos domínios económico e da informação que prejudica muitas instituições democráticas de países em desenvolvimento e a sua futura prosperidade à medida que aumenta a dependência da China".
Obviamente a China sabe muito bem como usar os média ocidentais para promover a sua própria propaganda. "O Vaticano e a elite empresarial ocidental", escreveu Michael Brendan Dougherty, "uma vez determinantes na vitória do Ocidente na Guerra Fria, foram colocados de joelhos pelo Partido Comunista da China". O regime chinês saiu-se bem onde o regime soviético se saiu mal. Em Dezembro passado, em Londres, uma menina de seis anos de idade, ao arrumar cartões de Natal, encontrou uma mensagem dentro de um cartão: "somos prisioneiros estrangeiros na prisão de Qingpu, em Xangai, na China, somos obrigados a trabalhar contra a nossa vontade", dizia a nota escrita à mão. "Por favor, ajude-nos e notifique a organização de direitos humanos". O capitalismo ocidental já virou até cúmplice da escravidão chinesa.
Os fabricantes de produtos de marca e bens de consumo ocidentais não estão sozinhos em se prostrar de tanto medo de "ofender" o Partido Comunista. A cultura ocidental tem vindo a curvar-se avidamente à auto-censura em relação à China. "O Ocidente é tão tolerante, passivo, complacente e ingénuo em relação a Pequim" salientou Liao Yiwu, escritor chinês exilado em Berlim.
"Os povos do Ocidente olham com incredulidade para a China, são seduzidos como um idoso na frente de uma jovem. Todos tremem diante da omnipotência chinesa. A Europa mostra toda a sua fraqueza. Não percebe que a ofensiva chinesa ameaça a sua liberdade e os seus valores".
A embaixada da China na República Checa está financiando um curso integrado de estudos académicos na Charles University, a mais prestigiada do país. Hoje as universidades britânicas dependem em grande medida de estudantes chineses, estimativas conservadoras calculam que eles desembolsam aproximadamente US$1,75 bilião com despesas de ensino. A Austrália é mais dependente ainda, o país recebe 200 mil estudantes chineses. Se eles voltarem para a China ou se as doações chinesas secarem, a Austrália perderá cerca de US$4 biliões.
Os 1.500 departamentos do Confucius Institute que o regime chinês abriu em 140 países oferecem cursos de idiomas e "culturais". No entanto, de acordo com Matt Schrader, especialista em assuntos da China na Alliance for Securing Democracy, esses institutos são "instrumentos de propaganda". Em Outubro passado, a Bélgica baniu o director do Confucius Institute em Bruxelas, Xinning Song, depois de os serviços de segurança o acusarem de espiar para Pequim.
Em 2013, quando a Universidade de Sydney cancelou uma palestra do Dalai Lama do Tibete no campus, muitos viram nisso os vínculos da universidade com os interesses chineses no lobby para acabar com o evento que já havia sido aprovado. Temas como o Tibete, a independência de Taiwan e o dissidente vencedor do Prémio Nobel da Paz, Liu Xiaobo, são tabu.
Segundo um estudo da Bloomberg, a China também se está a infiltrar no cenário político da Europa, apoiando partidos políticos e convidando políticos para visitarem a China. Ao levar a sua batalha ideológica para o exterior, o presidente Xi chegou a doar uma estátua de Karl Marx à sua cidade natal em Trier, Alemanha, em comemoração do 200º aniversário do nascimento de Marx.
Como era de esperar, Pequim faz uso de instituições multilaterais ocidentais em seu próprio benefício. Conforme Michael Collins detalhou num estudo para o Conselho de Relações Exteriores, Pequim expandiu a sua presença na Organização Mundial de Saúde. "As contribuições da China para a OMS saltaram 52% desde 2014 para cerca de US$86 milhões", segundo Collins.
"Isso deve-se em grande parte ao aumento na contribuição da China à OMS, com base no desenvolvimento económico e na população do país. No entanto, a China também aumentou ligeiramente as contribuições voluntárias de US$8,7 milhões em 2014 para aproximadamente US$10,2 milhões em 2019".
A exemplo da Ex-União Soviética, a China parece estar montando um gigantesco aparato de controle. Chamam-lhe "Polícia da Internet". Basta lembrar a polícia secreta da Ex-Alemanha Oriental, a Stasi, usando o sistema de vigilância mais avançado do mundo: é a China de 2020.
As ditaduras comunistas acabam sempre seguindo o mesmo roteiro. O escritor soviético Boris Pasternak foi agraciado com o Prémio Nobel de Literatura, mas o regime comunista impediu-o de recebê-lo. Na China, o crítico literário, escritor, poeta e activista de direitos humanos Liu Xiaobo foi agraciado com o Prémio Nobel da Paz, mas nunca conseguiu recebê-lo: morreu sob guarda num hospital chinês. A União Soviética tinha campos de trabalhos forçados, tal e qual como a China. O dissidente chinês Harry Wu, que passou 19 anos na prisão, comparou os campos chineses (Laogai) aos campos de concentração nazis e aos gulagues soviéticos.
Na União Soviética, escritores, políticos, generais e médicos que foram silenciados e executados sob o regime de Stalin, foram posteriormente "reabilitados" pelos líderes soviéticos após a morte de Stalin. O Partido Comunista da China acabou de "exonerar" o Dr. Li Wenliang, que soou o alerta sobre o surto do coronavírus. Foi acusado de "fazer afirmações falsas e perturbar a ordem social", depois foi forçado a retratar-se e na sequência, aos 33 anos, morreu da doença. É uma vergonhosa investida das autoridades chinesas para livrar a cara e sair bem na fita.
Num artigo para o diário espanhol El Pais na semana passada, Mario Vargas Llosa, laureado com o Prémio Nobel escreveu o seguinte sobre o coronavírus:
"ao que consta ninguém chama a atenção para o facto de que nada disso estaria a acontecer no mundo se a China popular fosse um país livre e democrático e não uma ditadura".
Vargas Llosa comparou então o surto epidémico ao desastre da Rússia em Chernobyl durante a era soviética. Ambas as ditaduras censuraram e silenciaram informações sobre as crises. Em resposta, o regime de Pequim não só chamou "irresponsável" a Vargas Llosa, como também baniu os seus livros de plataformas chinesas de e-books. Vargas Llosa alertou os "tolos" do Ocidente a não acreditarem na China, "o livre mercado com a ditadura política" e que "o que aconteceu com o coronavírus deveria abrir os olhos dos cegos".
O perigo de hoje é que, diferentemente de Chernobyl, que levou em parte à queda da União Soviética, o regime comunista da China expandir-se-á ainda mais, especialmente se, devido à crise do coronavírus, os Americanos não votarem em Novembro no primeiro presidente do país nos últimos 40 anos a opôr-se abertamente à China.
O sonho do Ocidente de um "renascimento da nação chinesa" transformou-se num pesadelo globalizado. Centenas de milhões de pessoas em todo o mundo estão confinadas, milhares estão mortas, as economias dos países ocidentais estão paralisadas, algumas à beira do colapso. O lugar comum são lojas e ruas vazias.
Isto poderá vir a ser aquilo que os analistas chamam "fim da ordem liberal". Os comunistas da China de hoje são mais capitalistas do que marxistas, pelo menos na esfera estatal. O presidente Xi adoptou o "leninismo de mercado", uma mistura da economia estatal com uma "forma aterradora de totalitarismo". O Ocidente precisa de acordar para as duas caras da China.
Giulio Meotti, Editor Cultural do diário Il Foglio, é jornalista e escritor italiano.
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Fonte: https://pt.gatestoneinstitute.org/15830/china-duas-caras?fbclid=IwAR0lEz_QRB7OH4PreTvfaxJmcnr0witZBswaWGYOChf4dzsKkBVeMAdo36I