quarta-feira, setembro 05, 2018

SOBRE O DESCARAMENTO DE ERDOGAN AO CRITICAR O ESTADO SIONISTA

Durante uma reunião parlamentar do partido ora no poder Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) em 24 de Julho, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan chamou a Israel o "Estado mais sionista, mais fascista e mais racista do planeta". Referindo-se à recente aprovação pelo Knesset (Parlamento de Israel) da "Lei Básica: que Define o País como Estado-Nação do Povo Judeu", Erdogan atacou a visão do governo israelita como "nada diferente da obsessão de Hitler com a raça ariana".
Na realidade, não há nada "fascista" nem "racista" na nova lei israelita. Pelo contrário, conforme observou David Hazony no Forward: "A lei está a ser elaborada desde pelo menos o início dos anos 2000, quando surgiram duas grandes forças que ameaçavam o projecto sionista conforme apreciado no contexto histórico. A primeira dessas forças foi o surgimento do "pós-sionismo", um pequeno movimento, emotivo, intelectual/político que repudia de maneira ostensiva a ideia de um "Estado Judeu" e busca transformar o país num "Estado de todos os seus cidadãos", despojando-o de toda e qualquer ligação com a história, consciência de identidade ou simbolismo judaico.
"A segunda força mais importante foi a 'revolução constitucional' liderada pelo então Presidente da Suprema Corte Aharon Barak, que reconheceu Leis Básicas anteriores como tendo status constitucional válido, que culminou com a aprovação de duas novas Leis Básicas (Lei Básica: Dignidade Humana e Liberdade e Lei Básica: Liberdade de Emprego) que estabeleceu os direitos fundamentais dos cidadãos israelitas, judeus ou não.
"Essas leis básicas não eram de maneira alguma ruins. O facto é que Israel é tanto um Estado Judeu quanto uma democracia liberal e as liberdades fundamentais devem ser protegidas para todos".
Quem diria, justamente Erdogan a acusar falsamente os outros de práticas que ele emprega há anos, que ele incrementa e expande desde o golpe fracassado de Julho de 2016, que tinha como objectivo derrubá-lo do poder. A bem da verdade, há pouca semanas o governo turco demitiu mais de 18.000 servidores públicos devido a supostas ligações com organizações que "actuam contra a segurança nacional".
De acordo com o Relatório Mundial de 2018 do Human Rights Watch: "Debaixo do estado de emergência em vigor desde Julho de 2016 (golpe fracassado), todo e qualquer decreto adoptado continha medidas que abafavam as salvaguardas dos direitos humanos e entravam em conflito com as obrigações internacionais da Turquia a respeito dos direitos humanos.
"Funcionários públicos continuaram a ser demitidos ou suspensos por decreto sem o devido processo legal... Centenas de veículos dos média, associações, fundações, hospitais privados e estabelecimentos de ensino que o governo fechou por decreto permaneceram fechados em 2017 e tiveram os seus bens confiscados sem nenhuma indemnização.
"As pessoas continuaram a ser detidas e submetidas à prisão preventiva sob acusação de terrorismo... Entre os processados encontram-se jornalistas, funcionários públicos, professores e políticos, bem como polícias e militares... Os processos... não raramente careciam de provas convincentes de práticas criminosas...
"A Turquia é a líder mundial no tocante à prisão de jornalistas e profissionais dos média que enfrentam investigações e julgamentos por actividades criminosas... A maioria dos jornais e canais de televisão não desfruta de independência e promove a linha política do governo...
"As autoridades frequentemente impõem proibições arbitrárias em relação à realização de assembleias públicas e dispersam com violência manifestações pacíficas...
"mais de quinhentos advogados foram presos e estão aguardando julgamento e mais de mil foram processados...
"Pelo terceiro ano consecutivo, o gabinete do governador de Istambul proibiu as paradas anuais do orgulho LGBT em Istambul..."
O tratamento dispensado às minorias na Turquia tem sido igualmente estarrecedor. O recente lançamento de um projecto em Istambul de "transformação urbana" ilustra uma das maneiras usadas pelo governo para rejeitar diligentemente tanto a história judaica quanto a cristã.
De acordo com os média turcos, o Município de Istambul declarou o bairro histórico de Kuzguncuk e outros 16 bairros como locais de "transformação urbana". A julgar pelos projectos anteriores dessa natureza que acabaram reduzindo áreas verdes, substituindo casas de carácter histórico por arranha-céus modernos, o mesmo destino aguarda Kuzguncuk. Este pitoresco bairro já foi "certa vez uma mistura das comunidades grega, judaica e arménia", sendo a minoria de muçulmanos, segundo descreve a estudiosa Amy Mills no seu livro publicado em 2010: Streets of Memory: Landscape, Tolerance, and National Identity in Istanbul. Segundo Mills: "em Kuzguncuk em 1914 havia 1.600 arménios, 400 judeus, 70 muçulmanos, 250 gregos e 4 estrangeiros".
Isto tudo mudou de forma dramática a partir de 1915, nos 10 anos do genocídio perpetrado contra arménios, gregos e assírios. Aproximadamente 3 milhões de cristãos foram assassinados, mesmo assim o governo turco continua até hoje negando que o genocídio tenha ocorrido.
Segundo o historiador Nedret Ebcim que residia em Kuzguncuk em 1933, a população do bairro ainda era 90% não muçulmana.
Mills escreve: "A maioria era composta de judeus, seguida pelos gregos, turcos e arménios... Os moradores de Kuzguncuk que se lembram dos velhos tempos "retratam uma cultura na qual não era incomum todos os residentes falarem um pouco de Ladino (língua judaico-espanhola), Grego, Arménio ou Francês.
"Hoje, no entanto, as famílias judias e cristãs residentes em Kuzguncuk resumem-se apenas a meia dúzia de gatos pingados. E a maioria dos membros dessas famílias já é casada com muçulmanos... As igrejas e sinagogas são mantidas em grande parte por pessoas que moram em outros bairros e retornam a Kuzguncuk para participarem dos cultos de fim-de-semana e conservarem os edifícios... A igreja arménia é composta por uma congregação muito pequena que vem de outras regiões de Istambul, já que praticamente não há mais arménios em Kuzguncuklu."
O mesmo acontece no restante da Turquia, onde os cidadãos não muçulmanos continuam a ser alvos de perseguição, mesmo após o estabelecimento da República Turca em 1923. Foi concebido o uso de "códigos de ancestralidade" para o registo das minorias no Cadastro da População Turca: número 1 apontando os gregos, número 2 os arménios e o número 3 os judeus.
Segundo Mills: "Desde o início da república, os líderes da Turquia queriam aumentar a participação dos muçulmanos na economia e reduzir a influência das minorias na economia, particularmente em Istambul... Na primeira década do século XX e nos primeiros anos da segunda, boicotes contra empreendimentos não muçulmanos e a expulsão de minorias de centenas de empregos nos sectores em que eles preponderavam resultou na saída de milhares de não muçulmanos de Istambul. Em 1929 a Turquia testemunhou a saída de 70 mil não muçulmanos.
"Em 1922 foi fundada a Associação Comercial Nacional da Turquia que tinha como objectivo determinar quais empresas eram turcas. A associação constatou que 97% do comércio de importação e exportação em Istambul e todas as lojas, estabelecimentos comerciais, restaurantes e centros de entretenimento em Beyoğlu, pertenciam às minorias. O levantamento foi o prenúncio das medidas tomadas com o objectivo de 'turcanizar' a economia da cidade. Em 1923 os não muçulmanos foram expulsos e impedidos de serem empregados em estabelecimentos comerciais e companhias de seguros. Em 1924 as minorias foram impedidas de trabalhar no sector de serviços, em bares, restaurantes, cafetarias, bem como determinadas profissões como capitão de navio, pescador e maquinista de eléctrico, cargos anteriormente desempenhados por não muçulmanos. Em 1934 uma lei identificou novas profissões dominadas pelas minorias a serem proibidas aos estrangeiros.
"As políticas de 'turcanização' das décadas de 1920 e 1930 em Istambul não visavam apenas os direitos patrimoniais e económicos, mas também a cultura e a língua não turca".
Por exemplo, em 1928 foi iniciada uma campanha por uma associação estudantil em Istambul com o objectivo de forçar as minorias a falarem o idioma turco. Foi proibido o uso em público de outras línguas fora o Turco e aqueles que não respeitassem a determinação eram ameaçados, espancados, presos ou multados.
Na Turquia, em 1941 arménios, assírios, gregos e judeus do sexo masculino foram levados para campos de trabalho forçado, conforme uma política chamada "recrutamento das vinte classes" onde eram forçados a trabalhar em condições sub-humanas na construção de estradas e aeroportos. Alguns perderam a vida devido a doenças e outros factores.
Em 1942 o governo turco promulgou a Lei do Imposto sobre Grandes Fortunas, como forma de impedir a participação de arménios, gregos e judeus na economia da Turquia. Aqueles que não conseguiam pagar o imposto eram enviados a campos de trabalho forçado ou deportados ou tiveram as suas propriedades confiscadas pelo governo. Segundo a historiadora Corry Guttstadt: "Muitas famílias foram forçadas a vender as suas lojas e os seus negócios, as suas casas e até os tapetes, móveis e outros utensílios domésticos, para levantar o dinheiro para pagar os impostos. "Alguns em desespero cometeram suicídio".
Nos dias 6 e 7 de Setembro de 1955, os cristãos gregos de Istambul tornaram-se alvo de um pogrom chefiado pelo governo no qual arménios e judeus também foram vitimados. Os turcos atacaram tudo o que pertencia a gregos: casas, empresas, igrejas, cemitérios e escolas, entre outros. Um jornalista britânico relatou que os bairros gregos de Istambul "pareciam as regiões bombardeadas de Londres na Segunda Guerra Mundial". A selvajaria dos vândalos criou uma atmosfera de medo que, após o pogrom, levou dezenas de milhares de gregos a deixarem a Turquia.
Em 1964 os gregos de Istambul, incluindo os deficientes, idosos e os enfermos, tornaram-se vítimas de uma expulsão em massa pelas mãos do governo turco. Os deportados foram notificados que dispunham de 12 horas para deixar a Turquia e que só podiam levar consigo 20 kg dos seus pertences e o equivalente a US$20, deixando para trás as suas propriedades, muitas das quais foram confiscadas pelo Estado Turco e por cidadãos comuns. Na esteira da deportação, inúmeros integrantes das comunidades ortodoxas gregas fora de Istambul também deixaram o país, elevando para 45 mil o total das saídas, segundo o pesquisador Salih Erturan.
De acordo com um levantamento realizado em 1992 pela Helsinki Watch ainda em 1991, a ínfima minoria grega de Istambul não tinha direito à liberdade de expressão, sendo continuamente censurada pelas autoridades turcas. Os dois jornais restantes de língua grega da cidade foram obrigados a enviar cinco cópias da publicação todos os dias ao gabinete do governador e não tinham autorização de criticar o governo turco.
Em 2008 um jornalista arménio salientou que muitos arménios na Turquia usavam dois cartões de visita diferentes: um para os patrícios arménios e outro, usando um nome turco, para os turcos que poderiam ser hostis aos arménios. "A identidade arménia é visível apenas dentro da comunidade (arménia), não sendo visível na esfera pública", salientou. "Em especial há 20 ou 30 anos, o fenómeno arménio de 'invisibilidade' era ainda mais acentuado." Aparentemente, por medida de segurança, muitos arménios não revelavam a sua verdadeira identidade em público.
Hoje a população da comunidade arménia da Turquia é de cerca de 60 mil habitantes. Há menos de 15 mil judeus e tantos quantos cristãos assírios. Segundo um boletim de notícias de 2005, havia apenas 1.244 gregos em Istambul. Além disso, mesmo as minúsculas minorias estão, ao que tudo indica, deixando a Turquia em contingentes cada vez maiores, para fugirem da instabilidade e agressividade a que estão sujeitas no país.
Entretanto, a Turquia é hoje governada por um regime que apoia a jihad, que procura esmagar as migalhas de liberdade que ainda restam no país. Inúmeros muçulmanos turcos que estão na mira dos abusos de Erdogan aos direitos humanos parecem chocados com os actuais incidentes anti-democráticos que ocorrem na Turquia. Não deveriam estar, esses abusos ocorrem no país há décadas. É provável que os Turcos continuem vivendo debaixo da opressão que eles próprios criaram.
A violenta reacção verbal de Erdogan à lei do Estado-Nação de Israel, portanto, não é apenas hipócrita, e sim totalmente injustificada. Não há nada na legislação que seja ofensivo às minorias ou conforme salienta Jonathan Tobin na National Review: "não há nada de ofensivo a menos que você ache que os judeus não merecem usufruir dos direitos fundamentais de colonização, soberania e de se defenderem no seu próprio país, direitos que não passariam pela cabeça de ninguém negar a quem quer que seja. É por isso que é impossível distinguir o anti-semitismo desse preconceito anti-sionista".
"Um olhar mais atento não revela nada que em qualquer outro contexto seria controverso. Declarar que o idioma nacional de Israel é o Hebraico e ao mesmo tempo reconhecer o estatuto especial do Árabe não é mais discriminatório do que a prioridade dada ao Castelhano em toda a Espanha."
É preciso lembrar Erdogan que não é Israel, vibrante democracia em franco desenvolvimento com direitos iguais a todos os seus cidadãos, cujo comportamento é reminiscente de capítulos sombrios da história. É a Turquia.
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Uzay Bulut, jornalista da Turquia, Ilustre Colaboradora Sênior do Instituto Gatestone. Ela está atualmente radicada em Washington DC.
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Fonte: https://pt.gatestoneinstitute.org/12934/hipocrisia-turca