PRESIDENTE DA COMISSÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA FALA EM MELHORIA DA CONCORDATA
O ex-ministro da Justiça, Vera Jardim, está há quatro meses na presidência da Comissão da Liberdade Religiosa, um órgão consultivo do Governo e da Assembleia da República ao qual compete alertar as autoridades em caso de violação da liberdade religiosa. Nesta entrevista, admite que a Igreja Católica é beneficiada relativamente às restantes religiões, mas justifica-o com a representatividade católica no tecido social. Assume que gostaria de ver a disciplina de moral e religião católica nas escolas substituída por uma cadeira de formação cívica que incluísse a história das várias religiões. Quanto à Concordata, não defende a sua revogação, mas não esconde que preferia que as relações entre a igreja Católica e o Estado português se regulassem pela lei da liberdade religiosa, acrescida de acordos pontuais, sobre casamento e património.
Como é que encontrou a comissão e que questões se levantaram em termos de liberdade religiosa nestes primeiros quatro meses?
Não há grandes problemas mas há sempre pequenas afinações que a comissão tem tido que acompanhar, no sentido de obviar a que haja restrições ao exercício pleno da liberdade religiosa. Normalmente, as confissões constituídas por pequenos grupos fazem culto em prédios e às vezes têm problemas com condóminos ou com as próprias câmaras municipais por causa do ruído, porque normalmente recorrem ao canto e à música. Temos chamado a atenção para a necessidade de salvaguardar o princípio constitucional fundamental que é o livre exercício de culto, sem prejuízo de salvaguarda das normas de ordem pública. Quanto à assistência nas prisões, nas forças de segurança e nos hospitais, não existem grandes problemas.
Não considera que na assistência religiosa nas cadeias e hospitais há uma discriminação positiva da Igreja Católica que dispõe de capelães pagos pelo Estado para exercer funções estritamente religiosas?
É verdade. Há uma discriminação neste sentido: a Igreja Católica tem um peso em Portugal que todos sabemos qual é. Temos estudos recentes que nos dão uma presença de mais de 85%, por vezes até 90%, de portugueses que se declaram católicos. Há uma cultura católica em Portugal e é natural que a Igreja Católica tenha uma presença mais articulada e mais forte no que diz respeito às capelanias. Mas não há sobre isto queixas graves das confissões religiosas.
Deve ser o Estado a financiar esta assistência católica?
É uma opção do Estado, que consta dos tratados. Sempre assim foi. Há aspectos que deviam ser melhorados: não vejo, por exemplo, grande sentido que os capelães tenham graduações no Exército. Isso existe noutros países, designadamente em Itália, mas é algo com que não estou de acordo. Mas das confissões minoritárias o que sentimos é que estão confortáveis com a sua situação, Até porque o exercício do direito de assistência, esse, está salvaguardado. Agora se há discriminação, a discriminação existe quando se trata igualmente aquilo que é diferente. Se a grande maioria das pessoas reclama o direito à assistência de um sacerdote católico, é natural que a Igreja Católica tenha as capelanias organizadas.
Mas na sua opinião justifica-se que o Estado tenha, pela Concordata, de garantir esta assistência, nomeadamente nas escolas onde é obrigado a garantir a oferta da disciplina de Moral e Religião Católica?
Anteriormente, a oferta era só de aulas de religião e moral católica e, hoje, há outras religiões que podem fazer isso. Os evangélicos, por exemplo, têm várias aulas de religião e moral evangélica. Agora tem que ter haver um número de interessados que o justifique. Não basta existir um evangélico numa turma para que haja aulas de religião e moral. E os pais têm de dizer que querem que o filho tenha aulas de religião. Isso resolvido há bastantes anos pelo Tribunal Constitucional, porque nós tínhamos um regime diferente, em que quando os pais não queriam que os filhos tivessem aulas de religião e moral católica tinham que fazer essa declaração. Hoje é o contrário e bem: tem que haver uma atitude positiva dos pais no sentido de pedir que os filhos tenham aulas de religião e moral católica.
Ao contrário do que se passa nas outras confissões, os professores de moral e religião católica estão integrados na carreira docente, têm um grupo de recrutamento próprio e são colocados através dos concursos nacionais de professores.
É verdade. Mas isso advém da presença altamente maioritária, quase hegemónica, da Igreja Católica no tecido social português. Não me custa aceitar que haja opiniões diferentes, mas não tenho sentido da parte das outras confissões queixas nesse aspecto.
No Reino Unido o que existe é uma cadeira de estudos religiosos onde são abordadas todas as religiões.
O Reino Unido tem tradições completamente diferentes. Nós integramo-nos numa tradição que fundamentalmente abarca Portugal, Espanha, Itália, um pouco a Bélgica – mas menos - e a Alemanha e a Áustria. E aí as coisas são por vezes até diferentes de Portugal, eu diria mais liberais para as igrejas dominantes do que em Portugal. A Inglaterra é anglicana, são tradições completamente diferentes, e temos que nos comparar com as tradições que têm alguma coisa em comum connosco.
Em Espanha, o PSOE, quando ainda estava ano Governo, propunha-se precisamente rever a Concordata no que à educação religiosa nas escolas diz respeito.
É verdade. Mas a Espanha não tem propriamente uma Concordata, tem quatro acordos com a Igreja Católica, assim como com as outras religiões. O nosso sistema é diferente. Nós temos uma Concordata com a Igreja Católica que não abrange a generalidade das outras religiões. Por mim, preferia que houvesse uma cadeira mais voltada para a formação cívica. Essa formação cívica poderia incluir a religião como fenómeno social importante, a história das várias religiões que existem no mundo. Mas a comissão, nesse aspecto, não tem tido queixas das outras confissões minoritárias.
Na sua opinião, justifica-se a manutenção da Concordata?
A generalidade dos países com quem nos podemos comparar tem concordatas com a Igreja Católica. A Itália, a Alemanha e a própria França, onde o princípio da laicidade é levado mais a sério na Europa, continua a ter uma Concordata numa parte do país - uma antiga Concordata celebrada nos tempos de Napoleão. E, portanto, concordo que tem de haver um acordo para regular determinados aspectos das relações entre o Estado e o Vaticano, visto que a Concordata é celebrada Estado a Estado. Se me pergunta a minha opinião, preferia que a Igreja Católica se regulasse pela lei da liberdade religiosa, como todas as outras religiões, e que tivesse um acordo, assim como outras religiões podem celebrar acordos (o ramo ismaelita do Aga Khan celebrou um acordo com o Estado português), para regular determinadas matérias.
Que matérias?
Por exemplo, o casamento e o património. Não há nenhuma Igreja cristã, que tenha conhecimento, em que o casamento seja um sacramento indissolúvel como é na Igreja Católica. E justificar-se-ia um acordo sobre o património histórico da Igreja Católica. Há uma Concordata, e não defendo a revogação da Concordata, mas preferia que a Igreja estivesse integrada na lei da liberdade religiosa e tivesse feito acordos para regular estes aspectos muito concretos. Agora também queria chamar a atenção para isto: se comparamos o conteúdo da lei de liberdade religiosa com o da Concordata, designadamente no que respeita aos benefícios com que as confissões religiosas contam em Portugal, as diferenças são muito poucas. Muito poucas mesmo. Qual é a grande diferença e o valor que tem uma Concordata para a Igreja Católica? É a sua perenidade. Uma lei altera-se consoante os governos e as maiorias parlamentares, a Concordata é um tratado internacional. Por isso é que a Igreja a prefere. Em Espanha, o PSOE tem essa posição. Não penso que seja a posição do Partido Socialista em Portugal, mas admito que haja outros partidos que defendem que não devia haver Concordata.
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Fonte: https://www.publico.pt/2017/01/18/sociedade/noticia/preferia-que-a-igreja-catolica-estivesse-integrada-na-lei-da-liberdade-religiosa-1757375
Etiquetas: Religião
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