«SOUMISSION», OU «SUBMISSÃO», LIVRO PROFÉTICO QUE AJUDA A EXTREMA-DIREITA A DITAR A AGENDA POLÍTICO-MEDIÁTICA EM FRANÇA
Fonte: http://expresso.sapo.pt/a-provocacao-falhada-de-houellebecq=f905730 (texto original redigido sob o novo acordo ortográfico mas corrigido aqui à luz da ortografia portuguesa)
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Publicado quarta-feira, o novo romance de Michel Houellebecq imagina a França em processo de islamização, depois da vitória de um muçulmano nas presidenciais de 2022. Vinda do "enfant terrible" das letras francesas, esta ficção especulativa seria sempre muito polémica, mas aumentou ainda mais o seu impacto devido ao massacre nas instalações do "Charlie Hebdo". O Expresso já leu o livro. Conclusão: tanto no plano literário, como no político, a montanha pariu um rato.
Num dos capítulos mais fortes de "Soumission", o sexto romance de Michel Houellebecq, editado em França esta quarta-feira (com uma tiragem de 150 mil exemplares e um recorde de pré-reservas na Amazon), assistimos a uma enorme manifestação da Frente Nacional (FN) de Marine Le Pen, em direção ao Arco do Triunfo, em Paris, que termina em confrontos violentos, nos quais se distinguem "grupos de homens mascarados, muito móveis, armados com espingardas de assalto e pistolas-metralhadoras". A ação passa-se em 2022, em vésperas da segunda volta das eleições presidenciais, mas é impossível, ao lermos agora o livro, não pensar no comando que atacou, precisamente na manhã de quarta-feira, a redação do "Charlie Hebdo", provocando a morte de 12 pessoas, entre as quais o director do jornal satírico e alguns dos seus principais cartoonistas.
Para tornar ainda mais arrepiante a coincidência, nesse dia a primeira página do "Charlie Hebdo" era dedicada a Houellebecq e ao seu novo livro polémico. Junto a uma caricatura do escritor, desdentado, a fumar, com um chapéu de feiticeiro na cabeça, anunciavam-se as "previsões do mago Houellebecq", que olhando para o leitor diz: "Em 2015 perdi os meus dentes. Em 2022, farei o Ramadão." Lá dentro, outros cartoons exploram a aura islamofóbica do livro. Num deles, surge a palavra "escândalo" junto ao rosto decadente e mal barbeado do romancista e a frase: "Alá criou Houellebecq à sua imagem!" Já o texto de crítica literária se revela ditirâmbico, cobrindo o livro de elogios. Foi escrito pelo economista de esquerda Bernard Maris, uma das vítimas mortais do ataque terrorista. Ontem à noite, o agente de Houellebecq anunciou que este ficou "profundamente afetado pela morte do seu amigo Bernard Maris". A promoção do livro está suspensa e o escritor, que não beneficia de protecção especial da polícia, ausentou-se temporariamente de Paris para um destino mantido secreto.
Pelo que se sabe, o pretexto para a matança perpetrada pelos irmãos Kouachi foi a publicação sistemática, por parte do jornal, de imagens do profeta Maomé, consideradas blasfemas. O mais certo era desconhecerem em absoluto que a capa do "Charlie" jogaria igualmente com as tensões religiosas que vêm instalando em França uma atmosfera de medo e confrontação. Nos últimos meses, vários debates intelectuais trouxeram para primeiro plano a questão da "identidade" nacional, do declínio do país e das supostas ameaças ao seu futuro que o aumento da população muçulmana poderá trazer. Várias teses da extrema-direita foram recuperadas, houve quem falasse de um "suicídio francês" já em curso, mas também, do outro lado da barricada, quem considerasse que toda esta retórica catastrofista, de fundo xenófobo, só pode beneficiar a Frente Nacional, cada vez mais em alta nas sondagens. Um romance de Houellebecq, o eterno provocador, sobre uma França subjugada ao Islão só poderia ser visto como a cereja em cima do bolo. E toda a gente se preparou para uma distopia capaz de acirrar ainda mais os ânimos.
A leitura do romance, porém, funciona como um anti-clímax. Politicamente, o livro é apenas ambíguo. Literariamente, chega a prometer muito mas fica aquém. E nem pelo lado polémico se distingue. Todos os que esperavam de Houellebecq uma provocação demolidora, ficarão desiludidos. O acontecimento central de "Soumission" é a subida ao poder do primeiro presidente muçulmano. Estamos em 2022 e François Hollande prepara-se para terminar um apagadíssimo segundo mandato, durante o qual emergiu uma nova força política: a Fraternidade Muçulmana, liderada por Mohammed Ben Abbes, um excelente orador, subtil, inteligentíssimo, carismático - uma espécie de Obama árabe. Quando a primeira volta da eleição presidencial confirma o colapso dos tradicionais partidos do poder (PS, no centro-esquerda; UMP, no centro-direita) e mais de 30% de votos para a extrema-direita de Marine Le Pen, abre-se caminho ao triunfo de Abbes. Nos meses imediatamente anteriores, a tensão entre as correntes "identitárias", que se vêem como os "indígenas europeus" (os "primeiros ocupantes desta terra"), e os alvos do seu ódio, as comunidades imigrantes (sobretudo as de origem magrebina), desembocam num clima de guerra civil, com casos graves de violência urbana que são silenciados pela comunicação social, por temor de que a sua divulgação favoreça eleitoralmente a FN.
Após as eleições, tudo se altera. O novo poder islâmico é suave, quase adocicado, e Abbes leva a água ao seu moinho, sempre com pezinhos de lã. Na prática, revela-se um liberal moderado. Nada de imposições radicais da 'sharia' (a lei islâmica), nada de fundamentalismo. As primeiras medidas - redução de impostos e mais apoios às pequenas empresas familiares - trazem-lhe popularidade. O desemprego baixa vertiginosamente, porque as mulheres são incentivadas a sair do mercado de trabalho. A dívida é controlada. A economia cresce. Os focos de conflitos sociais desaparecem. A criminalidade também. Instala-se uma inesperada paz social. Uma paz com alguns custos que todos parecem aceitar. A saber: é instaurada a obrigatoriedade do uso do véu e levada a cabo uma reforma educativa. Uma das principais bandeiras do republicanismo francês, a laicidade do ensino, cai por terra. O investimento nas escolas públicas é reduzido ao mínimo e florescem os estabelecimentos privados de rígida orientação islâmica, financiados pelos petrodólares sauditas.
Enquanto ficção política, esta narrativa deixa muitas questões em aberto. Como explicar uma adesão tão pacífica, para não dizer mansa, à nova ordem? Porque razão as mulheres não se insurgem contra o novo estatuto que lhes querem impor? Que é feito dos representantes da esquerda tradicional e da direita islamófoba? A que se deve uma passividade tão absoluta dos católicos, que assistem de braços cruzados à mudança de paradigma religioso? A verdade é que Houellebecq não parece preocupar-se muito com a verosimilhança do seu relato. Só assim se explica, por exemplo, que atribua a Abbes a capacidade de convencer a União Europeia a aceitar, como novos membros, a Turquia e Marrocos, mais tarde a Argélia e a Tunísia, alargando depois as negociações ao Egipto e ao Líbano, numa vontade expressa de fazer do Mediterrâneo o centro de gravidade da UE. E, pelos vistos, com tão pouca resistência internacional às suas ambições - vagamente imperiais (versão Roma antiga) - quanto a escassa oposição que enfrenta internamente. Para além disso, o simples cenário de uma submissão generalizada num país como a França, em que a mínima ameaça a direitos adquiridos gera movimentos de repúdio e greves gerais, é tão implausível que retira ao livro qualquer força enquanto reflexão prospectiva.
Na verdade, o foco do romance nunca está verdadeiramente na situação social e política do país. Fiel à sua obra e às suas obsessões, Houellebecq escreveu apenas mais um livro de Houellebecq. Introspetivo, rabujento, angustiado, intimista, cínico, melancólico, irónico, lírico, lúbrico, ácido. O centro de tudo é François, o narrador, académico frustrado, especialista na obra do escritor oitocentista J. K. Huysmans. Aos 44 anos, ele vive afundado numa crise de meia-idade. Solitário, bebe demais, aquece comida pré-cozinhada no micro-ondas, deambula pela cidade e pelos seus pensamentos, escreve artigos para revistas obscuras, assiste ao estertor de uma "social-democracia agonizante" sem mexer uma palha (sente-se "tão politizado como um rolo de papel higiénico"), e sobretudo sofre com as maleitas do corpo, bem como com as intermitências do seu único verdadeiro prazer: o sexo. Se o erotismo explícito e cru é uma das imagens de marca do escritor, "Soumission" não deixa os seus créditos por mãos alheias. Aliás, a maior ironia de todas, e muito houellebecquiana, chega no fim, quando o protagonista pondera converter-se ao Islão, não apenas por ser a única forma de manter o seu lugar de professor na Sorbonne (com um salário aumentado para dez mil euros), mas porque passaria a poder casar-se com três muçulmanas, resolvendo de vez os seus impasses existenciais, ainda por cima sem ter de se esforçar no jogo da sedução, porque há casamenteiras previstas para esse efeito.
A escrita de Houellebecq é sólida e por vezes requintada. Há um claro domínio dos ritmos narrativos, bons diálogos, um humor desarmante, uma erudição discreta (são excelentes todos os jogos de espelhos entre a vida do narrador e a de Huysmans, sobre quem escreveu a tese de doutoramento e um prefácio para a edição das obras completas, na Pleiade). Tanto descreve com rigor meteorológico uma frente fria que atravessa a Europa - ou as nuvens que pairam sobre Paris - como estabelece uma abordagem sociológica plena de sarcasmo durante uma ida ao centro comercial. O problema é que este arcaboiço literário de Houellebecq, bastante notório na primeira parte do romance, eleva a fasquia estética, mas depois o escritor não consegue manter o nível. A segunda parte sofre uma aceleração, como se o texto fosse movido por uma ânsia de dar sentido à nova ordem que se perspectiva na vida de François, e na vida dos franceses, mas a velocidade não nos leva a lado nenhum.
Chegados ao final algo amorfo de "Soumission", é difícil compreender o que Houellebecq pretendeu verdadeiramente fazer com este livro. O autor parece não defender nada e atacar tudo. O seu alvo não é apenas um hipotético islamismo europeu, entrevisto como lobo em pele de cordeiro; são também os partidos do actual arco da governação; a extrema-direita oportunista (em dado momento, para ganhar credibilidade, Marine Le Pen imita as roupas e os trejeitos de Angela Merkel); e até, talvez para surpresa de muitos, as correntes "identitárias", que em muitas questões - como a igualdade das mulheres, os direitos dos imigrantes ou o casamento dos homossexuais - não estão assim tão longe da praxis muçulmana. Ao caminho das certezas, Houellebecq prefere o da ambiguidade. Não é necessariamente uma má escolha. Mas defrauda claramente as expectativas de quem aguardava um grande escândalo. E se chega a parecer um incendiário capaz de atiçar chamas altíssimas, a verdade é que logo depois vira ostensivamente as costas às labaredas que provocou.
LIVRO CHEGA A PORTUGAL ANTES DO VERÃO
Lançado em França pela Flammarion, o livro está neste momento a ser traduzido para português e será publicado pela Alfaguara ainda durante o primeiro semestre de 2015 - "entre Abril e Maio", garantiu ao Expresso a responsável máxima da editora, Clara Capitão.
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«Provocação falhada», garante o Expresso...
«Falhada»? Falhada, depois do sucesso mediático-político que teve, oportunamente sublinhado pelo atentado terrorista muçulmano contra a liberdade de expressão?... Percebe-se: «falhada» porque o autor do texto queria muito que a provocação tivesse falhado, tanto que toma a iniciativa de declarar Houellebecq como um académico frustrado, o que, no contexto, tem assim uma certa pinta de ataque ad hominem, subtilmente abrandado depois dos elogios inócuos que o Expresso tece à ironia e erudição do francês. O autor do texto queria que a provocação tivesse falhado porque lhe custa muito o facto de uma provocação «islamófoba» e «xenófoba» ter tido sucesso e estar a contribuir para dar cada vez mais força à Extrema-Direita. É só por isso, por nada mais, que diz que esta provocação foi «falhada».
Quanto à verosimilhança do que Houellebecq imagina, até parece que não há já tanta elitezinha europeia favorável à entrada na UE não apenas da Turquia mas também de outros países norte-africanos...
Quanto à verosimilhança do que Houellebecq imagina, até parece que não há já tanta elitezinha europeia favorável à entrada na UE não apenas da Turquia mas também de outros países norte-africanos...
1 Comments:
Netanyahu incita os judeus em França a irem viver para Israel:
http://www.jpost.com/Israel-News/Netanyahu-to-French-European-Jews-after-Paris-attacks-Israel-is-your-home-387309
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