domingo, julho 27, 2014

SOBRE A ALEGADA SUPERIORIDADE DA GESTÃO PRIVADA

O enorme estoiro do Grupo Espírito Santo (que não do banco, espera-se) vem demonstrar que a superioridade alardeada da gestão privada é mais um daqueles fenómenos vagamente mitológicos em que a sociedade portuguesa é pródiga.
O GES colapsou (com sinais premonitórios dados no longínquo ano de 2002, quando uma inspecção levou à brusca substituição da empresa responsável pela auditoria) depois de um longo período em que nada do que lá dentro se passava era claro. Agora este grupo pode arrastar com ele muitos empresários que para obterem créditos bancários se viram simultaneamente persuadidos a comprar papel comercial do grupo. Uma persuasão musculada, que não se pode confundir com a possível promiscuidade que causou danos substanciais a uma PT agora privada, embora funcione simbolicamente como uma espécie de companhia de bandeira.
Para além do Espírito Santo, na memória da economia portuguesa há outras histórias sinistras recentes de quedas, que mesmo assim estão distantes das circunstâncias do Angola e Metrópole.
O BPN, o BPP, o BANIF ou o Grupo José de Mello são, porém, exemplos evidentes de fracassos, enquanto muitos dos supostos sucessos mais não são do que empresas que vivem encostadas ao Estado, como as PPP rodoviárias, começando na da Ponte Vasco da Gama, que já pagámos mais de dez vezes desde 1998, passando pelos petróleos, pela REN, pela ANA ou, menos mal porque vai tendo concorrência, pela EDP. A lista poderia estender-se ao privadérrimo sector farmacêutico, cuja receita fundamental vem naturalmente das comparticipações da saúde pública.
Verdadeiramente privados e com dimensão relevante sobram alguns bancos com capitais estrangeiros e meia dúzia de empresas industriais exportadoras que contaram com incentivos fiscais para se instalar. Há ainda e sobretudo os grupos de distribuição, nacionais ou estrangeiros, mas sediados fora de portas para pagar menos impostos, que prosperam na venda da paparoca e das utilidades do quotidiano. Aí sim, encontramos a iniciativa privada no seu esplendor e com uma gestão criteriosa da tesouraria, utilizando a liquidez do dia de caixa para fazer aplicações. Há quem questione a nobreza dessa dupla actividade, mas a verdade é que é dela que emergem os mais bem-sucedidos e muitos postos de trabalho mesmo que precários.
Como contra factos não há argumentos, a realidade manda dizer que entre nós praticamente tudo o que tem êxito se sustenta no Estado como cliente ou como concedente da actividade.
Mesmo negócios que aparentemente não têm a ver com o Estado, estão depois na mão de empresas que por sua vez são devedoras de bancos que precisam do Estado. Cria-se assim uma teia infernal de dependências. Ora isso dá razão a quem afirma que no mundo empresarial interessa muito mais saber a quem se deve do que conhecer os detentores do capital.
E é assim que assistimos a uma repetição de muito do que aconteceu em 1974/75. Quando foi nacionalizada a banca, o Estado ficou por tabela dono de quase toda a economia que devia dinheiro às instituições de crédito. Por isso lhe foram parar às mãos jornais, indústrias, restaurantes e até a florista da empresa que fazia as vezes do que veio a ser a Rodoviária Nacional. É de apostar singelo contra dobrado que, se a situação se repetisse hoje, não seria muito diferente. É pena, porque o mais difícil é reformar mentalidades.
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Fonte: http://www.ionline.pt/iopiniao/mito-da-gestao-privada/pag/-1