«AFINAL FOI BEM-FEITO PARA OS SACANAS DOS MAIAS...»

Fui ontem ver o filme «Apocalypto», de Mel Gibson.

É brilhante do ponto de vista da verosimilhança conseguida na sua tentativa de reconstrução histórica. Tenho para mim que, neste aspecto, todos os realizadores de filmes relativos a episódios da História antiga ou medieval deveriam ser como Mel Gibson no que toca à filmagem de toda a película nas línguas faladas no tempo e no lugar a que a acção se reporta. Já o anterior produto de Gibson, «A Paixão de Cristo», se tinha notabilizado por isso mesmo, uma vez que os actores só falavam Aramaico e Latim; e, em «Apocalypto», a única língua falada, do princípio ao fim, é a dos Maias. Pessoalmente, nada me agradaria mais, em termos de cultura e arte, do que ver a Ilíada e a Odisseia faladas em Grego antigo, a Eneida falada em Latim, os Eddas falados em Norso antigo, o Mabinogion falado em Galês antigo e o Cath Mag Tuireadh falado em Goidélico antigo...

Mel Gibson afirma querer lançar no seio da juventude da América Central a moda de falar em língua Maia com orgulho...

Quanto às cenas de acção, ao trabalho dos actores (todos desconhecidos do grande público ocidental, um pouco à semelhança do que sucedera no caso do filme sobre Cristo, isto com o intuito de que as personagens sejam encaradas como pessoas autênticas), ao guarda-roupa, ao argumento, ao enredo, o trabalho de Gibson é igualmente sem mácula. A obra recomenda-se especialmente a quem goste de violência e sangue a rodos sem atrasadices mentais pelo meio (coisa rara no cinema).

Mel Gibson, como realizador, é dificilmente ultrapassável, há que reconhecê-lo.

Sucede entretanto que este australiano com cara de bonzinho é um fundamentalista cristão. E os seus últimos filmes são, antes de mais nada, películas em prol do seu credo.
O caso torna-se mais agreste quando, além de promover a sua religião, o indivíduo vira baterias contra as dos outros. E é isso, quanto a mim, o que sucede em «Apocalypto»: a intenção parece ser a de denegrir a civilização pagã dos Maias, de maneira a tornar mais aceitável a conquista imperialista cristã da América central, feita por Castela, indefectível servidora da Igreja...

E porquê?

Talvez porque, na sociedade norte-americana, e, por extensão, anglo-saxónica, um dos maiores crimes que se costuma apontar aos cristãos é o do massacre eventualmente genocida perpetrado pelas hostes de Cristo contra as civilizações Maia, Asteca e Inca.
Em assim sendo, a reacção de certa intelectualidade cristã é a de tentar amenizar tal culpa, argumentando que essas três culturas viviam num ambiente excepcionalmente sanguinário, com matanças intertribais e horrendos sacrifícios humanos. A partir daqui, desvia-se a atenção dos abjectos e inenarráveis horrores cometidos pelos arautos do Crucificado contra os indígenas, porque, enfim, era preciso civilizá-los e fazer verter algum sangue para pacificar aquela gente... algum sanguezito, só um bocadito... como por exemplo aquela vez em que tropas castelhanas cortaram as pernas e os braços a uma data de revoltosos incas, deixando-os vivos, no chão, decerto mexendo-se como tartarugas voltadas ao contrário... mas pronto, aos revisionistas dos crimes cometidos pela Cristandade ninguém proíbe a expressão...

A intenção de Gibson parece ser a de fazer crer que a civilização Maia já estava em decadência antes dos invasores cristãos lá chegarem. E a frase introdutória do filme mostra isso mesmo, logo à partida - é qualquer coisa como «Uma civilização não é destruída por fora, mas sim por dentro.» Já houve nativos da América Central a denunciar isto mesmo.
Pelo meio, a violência incide nos aspectos da crueldade, por um lado, e do espírito de resistência por parte da vítima heróica, por outro, à semelhança do que já acontecera em «A Paixão de Cristo», quando Cristo é grotescamente torturado por obra de Romanos e de Judeus, e em «Braveheart», saga cinematográfica na qual a personagem interpretada por Gibson sofre como o caraças às mãos dos Ingleses. Nada melhor do que isto quando se quer incitar ao ódio e à repulsa por alguém ou por alguma ideia...

Confesso que já ia com ela fisgada, eu... assim que, há um ano ou mais, ouvi dizer que Mel Gibson ia filmar, ou estava a filmar, a civilização Maia aquando da chegada dos cristãos, percebi logo o que por aí vinha... confirmei de facto as minhas suspeitas.

O que é curioso é que as civilizações que «se destruíram por dentro» antes dos cristãos as converterem, foram as civilizações militarmente muito mais fracas do que a civilização que transportou o Cristianismo... de facto, os cristãos conseguiram converter pela força os povos da América, mas falharam na Índia, na China e no Japão, pois que, perante estas civilizações asiáticas, as tropas europeias cristãs não conseguiram, na altura em que disseminavam activamente o Cristianismo, não conseguiram, dizia, convencer os nativos a abandonar os seus Deuses Nacionais e a virarem-se para o Judeu Morto...

Portanto, os Maias, os Astecas e os Incas já estavam em decadência, ao passo que os Indianos, os Chineses e os Japoneses, muito mais civilizados, estavam ainda em ascenção... pois...

Será então que a vitalidade duma civilização se mede pela sua pujança bélica, derivada na maior parte ao seu nível de desenvolvimento tecnológico?...

Não há dúvidas de que a força bruta, guerreira e material teve a sua influenciazita nestas coisas de levar a fé da Paz e do Amor a toda(s) a(s) humanidade(s)...