segunda-feira, junho 27, 2005

O (RE)COMEÇO DE BATMAN

É quase sempre agradável e relaxante passar as vistas por uma película de super-heróis, mesmo que o filme em si seja uma boa merda.
Em princípio, trata-se quase sempre de uma coisa gira, colorida, sem pretensões.
E, por acaso, as produções cinematográficas dos últimos anos relativas a este tema, até nem têm sido más de todo.
Enfim, é catita para quem conhece, para quem cresceu com essas referências.
Independentemente do estilo kitsch quase sempre associado a este género de entretenimento, há no tema dos super-heróis um eco do brilhantismo de outras épocas, laivos de cavalaria medieval (o herói-a-tempo-inteiro com vestimenta resplandecente e armas magníficas), à mistura com um clima carnavalesco, formando um todo que bem se define como um moderno folclore urbano. Quanto à dita qualidade, tudo depende do autor. Um género literário, em si, nunca é idiota. Pretender o contrário, seria como afirmar que todas as histórias de amor são ridículas só porque os romances de cordel existem.
Já agora: haverá algum género literário mais antigo do que o da exaltação da figura de um grande combatente? Qual é a primeira e maior obra literária do Ocidente, não é a Ilíada, centrada nos feitos de um grande «super-guerreiro», Aquiles? E o maior herói da Grécia, não é Hércules, o guerreiro por excelência, dotado de uma super-força sem paralelo e capaz de feitos mais do que sobre-humanos?

A b.d. de super-heróis é especialmente apreciada nos E.U.A. e em Inglaterra (onde, volta meia volta, lá aparece em público um maduro vestido de super-herói, seja para reivindicar os seus direitos de pai, seja para outra coisa qualquer); nos outros países com forte tradição de banda desenhada, tais como a França e a Bélgica, tal tipo de personagem é quase inexistente. Ora o super-herói é um homem de acção que veste uniforme e está sempre pronto para o combate... assim, parece uma coincidência engraçada que os países que dispõem das forças armadas mais poderosas e activas sejam também aqueles nos quais o género de entretenimento super-heroístico é mais popular.
No século XX, a banda desenhada edificada em torno de uma personagem com poderes sobre-humanos, conheceu o seu primeiro grande impulso nos anos trinta, com o surgimento de Super-homem, criado por dois jovens judeus... Super-homem, cujo nome no seu planeta de origem seria Kal-El, palavra de raiz hebraica... Goebbels acusou-o de ser um joguete nas mãos dos Judeus... em 1940, surge o Capitão América, também engendrado por autores judeus, e tão musculoso como Super-homem, mas completamente loiro, de olhos azuis... os seus primeiros e principais inimigos, eram os nazis, pelo que a primeira capa da sua revista mostrou o herói a esmurrar Hitler... é curioso que, numa época em que na Europa a arte fascista e nacional-socialista glorificava a imagem do corpo viril, musculoso, um grupo de judeus do outro lado do Atlântico tentava virar esse modelo contra os seus inimigos...

Quando se percebe o que está por detrás de certos produtos, pode-se usufruir do seu lado bom sem preocupações de maior, estando-se já vacinado contra os venenos ideológicos por eles veiculados. É pois possível reduzi-los a puro e simples entretenimento, tranquilizante, sem consequências de maior.

Por conseguinte, aconteceu que, num frio sábado à noite, com céu enevoado e lua quase cheia, fui ver o regresso do Cavaleiro das Trevas ao grande ecrã. Batman begins... o começo de Batman. O porquê de Bruce Wayne ter resolvido trajar-se de morcego para aterrorizar, espancar e prender a ralé criminosa da sua cidade.
Depois dos supostos «fiascos» dos dois últimos filmes de Batman da década de noventa, o realizador parece querer «começar do princípio», indo à origem e contando-a à sua maneira. Esta vontade de retornar às origens, esta busca pela definição da verdadeira identidade do sujeito, ficará para a História como um traço típico da mentalidade desta época.

Ora o filme - o filme tem os seus altos e baixos. Logo à partida, está manchado pela péssima e saloia pretensão de meter ao barulho uns quilinhos de filosofia barata e de «psicologia» de trazer por casa. A parte em que a namorada do herói lhe espetou duas lambadas nas ventas só porque ele queria fazer o que era natural que quisesse fazer (matar a tiro o assassino dos seus pais), foi por demais risível. Ri-me, de facto, espontaneamente. Pensei que merdas dessas já estivessem a passar de moda.
Aquilo tem tanta moralice da treta que até nem se esqueceram de enfiar pelo meio uma colherada referente à escravatura (os antepassados de Bruce Wayne, alter-ego de Batman, teriam ajudado os escravos negros a fugir para o norte...), só para mostrar que os genes familiares de Wayne eram bonzinhos de todo. O irado carrasco dos criminosos até se treinou na China e tem um amigo preto, umas novidadezitas multi-culturalistas introduzidas agora mesmo...

É a recuperação da lavagem politicamente correcta que a figura do Homem-Morcego sofreu ao longo das décadas.

Os esquerdistas que dominam a comunicação sucial, as editoras e a cultura pop, não podiam admitir que os jovens leitores ficassem sujeitos a ler histórias onde o herói é um gajo vingativo (repare-se em como, por mais que dourem a pílula, nunca conseguem evitar que se reconheça o óbvio, que a grande motivação de Batman é um espírito de vingança), violento e que não se importa nada em deixar morrer a escumalha criminosa. Batman está sempre com cara de pau, não é nada simpático, enche os criminosos de pavor e de bordoada, não tendo por eles nenhuma compaixão; impõe a ordem à força. Não hesita em determinar quem são os culpados do crime – são os criminosos, não é a sociedade...
Batman é fascista, disseram certos observadores da banda desenhada...
Note-se, por exemplo, que o Batman original usou armas de fogo manuais, mas depois os bem-pensantes pacifistas deram-lhe a volta e puseram-no a ter repulsa pela pistolada toda... pois é... o morcego usa mil e um artefactos, até tem mísseis ou lá o que é no seu batmóbil, mas quanto a revólveres ou pistolas, nem pensar!... Por isso é que, no filme, o realizador Nolan manda Bale atirar ao mar o revólver da vingança.
Isto percebe-se facilmente se se souber que uma das principais polémicas da sociedade norte-americana reside na questão de determinar se o cidadão comum tem ou não direito a possuir armas de fogo – a Direita, diz que todo o bom americano deve poder comprar as armas que quiser, até porque a América nasceu assim; a Esquerda, quer reduzir o direito de porte de arma tanto quanto possível, atribuindo às armas a culpa de imensas desgraças (mesmo que, entretanto, aproveite para desculpabilizar os criminosos que as usam com propósitos condenáveis...).

As películas «Batman Forever» e «Batman and Robin», suscitaram vivos protestos por parte dos fãs do Homem-Morcego, que odiaram a estética bizarra que caracterizou essas produções, em contraste com a atmosfera mais sombria (e, portanto, mais fielmente batmânica) dos dois filmes anteriores.
Então e com esta recuperação política da parte mais foleira das histórias do seu herói, a do politicamente correcto, com isto já os fãs não se preocupam?...

A respeito da parte psicológica propriamente dita, aqueles rodriguinhos todos em torno dos medos, e do controle dos próprios medos, e do medo que se tem de ter medo, e da necessidade de enfrentar o medo, já não há pachorra para tanto lugar-comum e para tanto floreado bacoco. Só se salva a ideia de atirar o seu próprio medo para cima dos seus inimigos. Trata-se, como disse Eurico de Barros, da moda da «desvirilização» do herói.


Quanto ao resto, a película nem está muito má, se esquecermos algumas das suas passagens, aquela mania americana das perseguições de automóveis (não há filme yanke de acção que não tenha, ou perseguições/corridas de cavalos, ou de naves espaciais, ou de carros espaciais, ou de automóveis, ou de bigas...), o gosto entusiástico e um nadinha boçal pelas explosões que deitam meio mundo pelo ar fora e deixam o outro meio mundo embasbacado (assim se vão habituando as novas gerações a lidar bem com os chamados «danos colaterais» das guerras) e aquela monótona e por vezes idiótica tendência para resolver tudo in extremis, mesmo no último segundo, tirar o rastilho mesmo mesmo mesmo um cagagéssimo de segundo antes da bomba explodir, que seca do catano.

Antes de tudo isso, pareceu-me que a morte dos pais de Bruce está um bocado rápida demais, dá ideia de ter sido filmada a despachar, gravada logo à primeira, para não chatear muito. A cena devia demorar pelo menos o dobro do tempo e ser mais bem definida. O resultado não é nada convincente.

Quanto ao lado bom da coisa:
- óptima banda sonora;
- alguns bons momentos (a escalada das montanhas nevadas, a primeira vez que o vilão Espantalho coloca a máscara);
- actores bem escolhidos - Bale é de longe o melhor Batman até ao momento;
- belo veículo;
- cenário muito satisfatório, com a elaboração de uma Gotham City dominada por uma atmosfera suficientemente tenebrosa, um pouco gótica;
- bons efeitos especiais;
- convincente explicação para a posse de todas as armas e ferramentas do herói;
- excelente justificação para a existência da capa no seu uniforme, e, ao mesmo tempo, para a sua capacidade de planar, dois gordos coelhos numa só cajadada de génio.

Em suma, é de ver, sem exigir muito nem criar demasiadas expectativas.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

leia o dicionário do morcego

31 de julho de 2006 às 14:20:00 WEST  
Blogger Caturo said...

Qual dicionário?

A propósito de quê?

31 de julho de 2006 às 14:33:00 WEST  

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