quarta-feira, fevereiro 03, 2021

ESCÓCIA MAIS PERTO DA INDEPENDÊNCIA, IRLANDA DO NORTE MAIS PRÓXIMA DA NAÇÃO DE QUE SEMPRE FEZ PARTE

Após a saída da União Europeia, Londres deve lidar com ameaça de reunificação da Irlanda e de separatismo na Escócia. O que pode o Reino Unido fazer para evitar o seu próprio desmembramento?
A saída do Reino Unido da União Europeia trouxe consequências inesperadas para Londres. Ao defender a desunião com o bloco europeu, poucos britânicos anteciparam que poderiam estar a promover o desmembramento do próprio país.
Formado pela Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte, o Reino Unido enfrenta dificuldades para coibir movimentos independentistas dentro das suas fronteiras.
"O Brexit e a pandemia colocaram a agenda social em primeiro plano, e com ela o debate sobre a separação do Reino Unido e adesão à União Europeia", disse a pesquisadora do Instituto de Europa da Academia de Ciências da Rússia, Kira Godovanyuk, à Sputnik Brasil. 
Os casos mais preocupantes são o da independência da Escócia e da secessão da Irlanda do Norte. Quais as possibilidades desses territórios abandonarem Londres? E o que pode o Reino Unido para evitar o seu próprio desmembramento?

Independência da Escócia
Após a saída definitiva do Reino Unido da União Europeia, em 31 de Dezembro de 2020, a primeira-ministra escocesa, Nicola Sturgeon, defendeu a convocação de novo referendo de independência na Escócia.
De acordo com a primeira-ministra, os escoceses votaram maioritariamente pela manutenção do Reino Unido no bloco europeu, logo deveriam ter o direito de reabrir o debate sobre sua independência.
"A questão da separação ganhou maior apoio da população", frisou Godovanyuk. "Mas a autorização para o referendo deve ser dada por Westminster, isto é, pelo poder central em Londres."
Em 2014, Londres permitiu a condução de referendo de independência na Escócia, no qual 55% dos eleitores optaram por permanecer no Reino Unido.
"O referendo de 2014 contou com o apoio de Westminster [...] e o processo foi totalmente legítimo", lembra Godovanyuk.
De lá para cá, no entanto, "o apoio aos nacionalistas escoceses aumentou muito". 
"Nas eleições gerais de 2019, os nacionalistas escoceses fortaleceram-se. Eles ainda contam com um aumento de bancada nas eleições locais, previstas para Maio deste ano", disse Godovanyuk.
No entanto, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, declarou reiteradamente que não tem intenção de autorizar um novo referendo na Escócia.
"Caso o referendo seja realizado sem o apoio de Westminster [...] o resultado não será reconhecido por Londres. Haveria um problema de legitimidade", explicou Godovanyuk.
O movimento escocês quer evitar repetir o cenário da região espanhola da Catalunha, que realizou o referendo de independência em 2017 que, sem o apoio de Madrid, não obteve reconhecimento internacional.
Apesar das dificuldades, a independência da Escócia "vai dominar o debate público" e "os nacionalistas escoceses vão pressionar Westminster", garante Godovanyuk.
Para ela, "a questão do referendo será utilizada como instrumento de barganha entre o governo da Escócia e Londres", além de ser "um trunfo político para os nacionalistas escoceses nas eleições locais de Maio".

Reunificação da Irlanda
O principal desafio à unidade do Reino Unido, no entanto, é a possibilidade de reunificação da Irlanda.
A Irlanda tornou-se independente do Reino Unido em 1921. Após sangrenta guerra civil, a Irlanda do Norte foi mantida sob controle britânico.
"Em 2021 é comemorado o jubileu da independência da Irlanda, o que traz a questão da reunificação da ilha de volta à agenda", notou a pesquisadora.
Além disso, após a saída do Reino Unido da União Europeia, Londres encontra-se separada da Irlanda do Norte por uma fronteira marítima.
"Uma das principais consequências do processo do Brexit foi a instalação de fronteira entre o Reino Unido e a Irlanda do Norte, onde há controle alfandegário. Uma situação sem precedentes", comentou Godovanyuk.
A alternativa teria sido estabelecer uma fronteira terrestre entre a Irlanda e a Irlanda do Norte, mas isso poderia incitar à mobilização de grupos armados que lutam pela reunificação da ilha.
A fronteira marítima, no entanto, deixou a Irlanda do Norte mais longe da sua metrópole, Londres, e mais próxima da Irlanda, que é membro da União Europeia.
"A reunificação da ilha torna-se cada vez mais popular", declarou Godovanyuk. "Mas é um facto que Westminster vai trabalhar para impedir esse movimento."
Ainda mais, "é difícil dizer como essa agenda vai avançar no governo da Irlanda do Norte, que é formado tanto por nacionalistas quanto por unionistas, que defendem a manutenção do Reino Unido", notou Godovanyuk.
Mesmo assim, ela acredita que a unificação irlandesa vai "dominar a agenda política local nos próximos anos".

Adesão à União Europeia
Tanto o movimento de independência da Escócia quanto o pela unificação da Irlanda reivindicam o direito de manter-se parte da União Europeia.
Porém, no caso escocês, a adesão ao bloco não estaria garantida.
"Caso a Escócia venha a tornar-se independente, terá de entrar com pedido de adesão à União Europeia e passar por um longo processo, cujo resultado ninguém sabe qual é", ponderou a pesquisadora.
A adesão da Escócia ao bloco também poderia enfrentar oposição de países-membros que lutam contra o separatismo interno, como a Espanha.
"Já no caso da unificação da Irlanda, a Irlanda do Norte tornar-se-ia membro da União Europeia de forma automática", disse Godovanyuk.
Lembra que "quando a Alemanha Oriental se tornou parte da Alemanha, foi automaticamente incorporada à União Europeia", o que abriu um precedente para o caso irlandês.
Nesse sentido, "seria mais simples para Bruxelas reconhecer esse acto, do que uma eventual independência da Escócia", argumentou Godovanyuk.
E o que pode Londres fazer?
O governo central em Westminster tem um triplo desafio a enfrentar: a pandemia de COVID-19, a saída da União Europeia e a ameaça de desmembramento territorial.
"Aqui com certeza Londres precisará de fazer concessões económicas, realizar mais investimentos e aumentar a autonomia monetária desses territórios", acredita Godovanyuk.
No entanto, não está claro "se o Reino Unido terá recursos suficientes para essa investida, dado o recuo da actividade económica".
"Será um grande desafio manter o crescimento económico do país depois da saída da União Europeia", notou Godovanyuk. 
A integridade britânica dependerá, em grande medida "da estabilidade do governo central e de quão acertadas serão as políticas adoptadas para manter a integridade do Reino Unido", concluiu a pesquisadora.
Caso contrário, Londres pode precisar de conselhos de Bruxelas sobre como lidar com regiões que pedem para seguir o próprio rumo, torcendo para não provar do seu próprio veneno.

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Fonte: https://br.sputniknews.com/opiniao/2021020216883906-reino-desunido-apos-sair-da-uniao-europeia-londres-enfrenta-separatismo-interno/