terça-feira, novembro 25, 2025

UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL DE QUEM VIVEU O 25 DE NOVEMBRO DE 1975

«O Dia em que Esperei por Armas: o Meu 25 de Novembro
O 25 de Novembro foi o desfecho inevitável de meses de tensão acumulada, contradições políticas profundas e uma disputa silenciosa mas feroz pelo futuro de Portugal. Começou nas eleições de 25 de Abril de 1975, as primeiras eleições verdadeiramente livres depois de meio século de ditadura. A participação foi esmagadora e o resultado foi claro. O PS venceu com larga vantagem, seguido do PPD, enquanto o PCP ficou muito atrás com apenas 12,5 por cento dos votos. Portugal escolheu uma democracia plural e parlamentar. Contudo, esta derrota abriu uma fractura entre o que o eleitorado expressou e aquilo que o PCP, mergulhado no fervor revolucionário, acreditava ser o rumo inevitável da história.
Pouco depois destas eleições, em junho de 1975, Álvaro Cunhal concedeu a Oriana Fallaci uma entrevista que caiu num país já em combustão. No jornal O Caso República foi publicado o parágrafo central que se tornou emblemático daquele momento político: “Mas em Portugal não haverá oportunidade para uma democracia de tipo ocidental, como há na Europa. O nosso país está a viver um processo revolucionário que não tem retorno e que não poderá ser enquadrado naquilo que se chama democracia burguesa. Há forças reacionárias que pretendem esse regresso, mas não o conseguirão. A revolução portuguesa tem características próprias e desenvolver-se-á no sentido da construção de uma sociedade socialista. Este é o caminho que a situação objetiva do país impõe.
A declaração foi clara. Mesmo depois de perder as eleições, Cunhal afirmava que Portugal não seguiria uma democracia liberal mas sim um processo revolucionário irreversível. Para muitos, isto confirmou que o PCP não estava disposto a aceitar plenamente o resultado das urnas.
O país mergulhou no chamado Verão Quente, um período febril em que tudo parecia possível e perigoso. Quartéis divididos, movimentos militares rivais, greves e contra greves, comissões de trabalhadores a disputar instituições, ocupações de herdades, sedes assaltadas, uma espiral de radicalização crescente. Para muitos de nós, jovens militantes do Partido, a revolução socialista parecia não só possível como desejável. Eu acreditava nisso com toda a força. Sentíamos que estávamos a viver um momento histórico irrepetível.
Nos dias que antecederam o 25 de Novembro, o clima tornou-se ainda mais tenso. Grupos de estudantes da UEC, foram distribuídos por casas específicas. Estávamos preparados, mobilizados e à espera de armas. A informação que circulava era clara. Haveria um avanço de sectores militares de esquerda e nós juntar-nos-íamos para completar a segunda fase da revolução. Aguardar não era simbólico. Era literal. Estávamos à espera de armas, convencidos de que Portugal precisava de um último impulso para não cair numa democracia considerada frágil e reaccionária e de novo no fascismo.
À medida que o dia avançou, tornou-se evidente que a correlação de forças no terreno não correspondia ao que nos tinham transmitido. Tropas paraquedistas ocuparam várias bases da Força Aérea, mas a reacção dentro da própria Força Aérea não foi uniforme e houve unidades que se mantiveram alinhadas com o plano democrático. A Marinha também não avançou com qualquer acção revolucionária. Pelo contrário, manteve-se estável e afastada de confrontos directos, sem dar o apoio decisivo que muitos esperavam. O Exército foi dividindo posições e várias unidades que se julgava estarem prontas a entrar em acção não se moveram. Com o afastamento de Otelo Saraiva de Carvalho da coordenação operacional, tornou-se claro que não existia capacidade real para desencadear um movimento militar coordenado.
As armas não chegaram. O avanço militar não se concretizou. Voltámos para casa em silêncio, com um vazio difícil de descrever. Eu, na altura, acreditei que tudo estava perdido. Achei que a extrema-direita iria recuperar o poder e que voltaríamos ao passado. Era esta a narrativa que nos transmitiam. A desilusão foi profunda.
Poucos anos depois, percebi o que a paixão e o idealismo não me deixavam ver. O PS, o PSD e o CDS não queriam restaurar o passado. Queriam impedir que Portugal entrasse noutra forma de autoritarismo. O país não recuou cinquenta anos. Não voltou ao medo. Fez o contrário. Avançou, consolidou uma democracia jovem, imperfeita mas livre.
Hoje sei que a via revolucionária que então defendíamos teria sido um desastre. Depois de quase meio século de ditadura, impor outra, mesmo em nome do proletariado, teria condenado o país a novas décadas de silêncio e vigilância. Continuo a reconhecer em Álvaro Cunhal uma figura de enorme força, disciplina e convicção. Mas a história escreve-se com consequências. E as consequências do caminho que ele desejava teriam sido devastadoras.
O 25 de Novembro foi a vitória da liberdade. Salvou Portugal de um abismo e permitiu que pudéssemos viver, discordar, escolher e construir um país sem medo. Salvou-nos até de nós próprios, daquela parte de nós que acreditava que a transformação só podia acontecer pela força. A verdadeira mudança também se faz devagar, por dentro, com tempo.
Hoje, olhando para trás, sei que foi precisamente aquele dia, o dia em que nada do que esperávamos aconteceu, que tornou possível tudo o que veio depois. A democracia portuguesa nasceu ali, naquele silêncio, naquela suspensão profunda do destino. E, apesar de todas as imperfeições, ainda bem que assim foi.»
- Maria de Nazaré de Azevedo Sobral Ladeiras, mais conhecida como Né Ladeiras, cantora portuguesa.

Notável testemunho da artista sobre a sua experiência do 25 de Novembro, quando era militante do PCP. Deve ser lido, relido, guardado.
A citação do que Cunhal disse poucos meses antes é especialmente significativa... Depois andou o grosso das elites tugas (portuguesas são outra coisa) a jurar que o PCP foi "fundamental para a Democracia portuguesa!" quando na verdade sempre foi seu inimigo, o que, de resto, não é surpresa nenhuma, já Lenine tinha acabado com as eleições na Rússia em 1919, depois de as perder.


1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Mais outro para a colecção, ó Caturo:

https://edition.cnn.com/2025/11/19/us/woman-fire-chicago-train-blue-line

26 de novembro de 2025 às 16:41:00 WET  

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