SOBRE O CONFLITO ETNO-RELIGIOSO NA BOLÍVIA
«Pachamama nunca retornará ao palácio. A Bolívia pertence a Cristo», declarou o líder da oposição boliviana Luis Fernando Camacho.
Pachamama é uma Deusa adorada na religião dos índios andinos ou indígenas dos Andes. Cerca de 66% da população boliviana é ameríndia ou mestiça. Juan Evo Morales Ayma, o presidente agora deposto, militante do MAS ou Movimento ao Socialismo - Instrumento Político da Soberania dos Povos, nasceu numa família de agricultores dos índios Aymara.
Camacho anunciara já o envio de uma Bíblia e uma carta de resignação a Morales. Invocou a cruz do Judeu Morto como cavalo de batalha contra a presidência do presidente andino e prometeu expurgar as crenças indígenas do governo boliviano: «devolver Deus ao palácio queimado» foi expressão que usou para descrever esta sua gesta político-religiosa. Após a expulsão de Morales, chegou a ajoelhar-se e a rezar diante de uma Bíblia em cima da bandeira da Bolívia. Numa subsequente mensagem de tweeter, escreveu: «Com a Bíblia, o rosário e uma carta de renúncia na mão, entregamo-nos a Deus para uma nova e reestruturada Bolívia em democracia.»
Morales respondeu assim à campanha de Camacho: «Eles usam a Bíblia, usam Jesus Cristo, para subjugar as irmãs em Santa Cruz, fazem os homens e as mulheres ajoelharem-se. Causa raiva o modo como usam a Bíblia, a oração, as orações, para discriminar contra os mais humildes.»
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Fonte: https://wildhunt.org/2019/11/bolivian-opposition-declares-pachamama-unwelcome-in-palace.html?fbclid=IwAR0IoInbzGms0VyRMExks-Fpn-kYdtI07Sh3w1TM5isHRHyg36yTp21C3Go
Entretanto, também houve já quem o acusasse de trair a Pachamama... mas referindo-se ao terreno que alegadamente entregou a interesses estrangeiros, como aqui se lê:
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/12-nov-2019/evo-morales-o-indigena-acusado-de-trair-a-pachamama-11503229.html
Há mais pormenores sobre este conflito, pelo que recomendo a leitura do artigo que aqui fica, a itálico, da Globo
https://epoca.globo.com/disputa-por-poder-na-bolivia-opoe-religiao-catolica-tradicoes-indigenas-24084677 - pus a negrito as partes que me pareceram mais significativas :
No prólogo da constituição boliviana, aprovada por Evo Morales em 2009, ficou gravado: “Cumprindo o mandato de nossos povos, com a força da nossa Pachamama, e graças a Deus, refundamos a Bolívia”. Mas, agora que Evo renunciou à presidência e se exilou no México, a oposição parece querer re-refundar o país.
Na Martes à noite, a auto-proclamada presidente da Bolívia, Jeanine Añez Chavez, adentrou o parlamento boliviano segurando uma bíblia grande. Era uma clara afronta ao ex-presidente, que baniu o livro sagrado do palácio presidencial em 2009, quando a nova constituição instituiu que a Bolívia é um país laico.
E essa não foi sua única afronta à tradição católica da Bolívia. Em 2010, reeleito a primeira vez, Evo saiu de uma reunião com o papa Bento XVI no Vaticano, e disse à imprensa que a Igreja deveria democratizar-se. Pediu ainda a abolição do celibato e o ordenamento de mulheres sacerdotes.
Apesar de também se declarar católico, Evo trouxe para os discursos oficiais referências às deidades da natureza veneradas na região Andina, como a Pachamama (Mãe Terra) e o Tata Inti (pai Sol). A cada Agosto, mês Pachamama, participava de oferendas, que ele considera "parte da identidade do nosso povo”.
Mas o caldo entornou de vez quando, no início de 2018, foi incluído no código penal a criminalização do “recrutamento para a participação em conflitos armados ou organizações religiosas ou cultos". A pressão da igreja foi tanta, que ele se viu obrigado a anular este artigo.
Agora parece ter chegado a hora da revanche. Luis Fernando Camacho, conhecido como “el macho”, líder da Direita porrada e bíblia, anda por aí organizando a oposição a Evo com uma bíblia na mão: “A Pachamama nunca voltará ao Palácio. Bolívia é de Cristo", diz ele numa gravação feita para as redes sociais. Num tuíte, disse que pediria a prisão de Evo e seus ministros. “ No es veganza, es justicia divina ”
Evocar justiça divina nunca prenunciou algo bom na política. Mas dar um diagnóstico preciso para o que está acontecendo na Bolívia é ignorar a complexidade da história. Apoiantes de Morales acusam um golpe de Estado, enquanto seus opositores acreditam que a sua renúncia foi o início da reconstrução democrática. Nenhuma das duas versões dá conta de explicar 100% a crise.
A história de Evo Morales fala sobre esperança e optimismo, mas também de abuso de poder. A sua política diminuiu consideravelmente a extrema pobreza - que passou de 38% em 2005, quando ele foi eleito, para 15% no ano passado - e manteve bons índices de crescimento económico, especialmente se comparado ao restante do continente, mas o seu apego ao poder preocupava até mesmo apoiantes.
Para dar um exemplo extravagante, Evo construiu um palácio presidencial de 29 andares no meio da pobre La Paz e financiou a construção de um museu de sete milhões de dólares que contém uma sala em sua homenagem. Aos poucos distanciou-se demais da imagem de primeiro presidente indígena do país, que cresceu numa casa feita de pau a pique, em Orinoca, a 430 quilómetros ao sul de La Paz. Ex-pastor de ovelhas, Evo e dois irmãos foram os únicos dos sete filhos do casal Dionisio Morales e María Ayma que sobreviveram à pobreza.
Evo disputou a um terceiro mandato em 2014 (um a mais que o permitido) alegando que o primeiro não contava porque tinha sido antes da nova Constituição. Já foi um malabarismo difícil de engolir. Dois anos depois, foi derrotado num plebiscito no qual pediu o direito de disputar a um quarto mandato, mas ainda assim forçou o sistema e conseguiu autorização do tribunal eleitoral, de maioria aliada, para concorrer a um quarto governo. Evo errou. Nenhum político, por melhor ou mais amado que seja, deve romper as regras democráticas para se perpetuar no poder.
A gota de água para a oposição foi uma auditoria da Organização dos Estados Americanos que sugere, além de outras irregularidades, que um servidor fantasma, sem supervisão oficial, assumiu o controle dos últimos estágios da contagem de voto, mudando os resultados em favor de Evo.
Evo tem forçado a barra há duas eleições, mas ser forçado a deixar o poder a dois meses de concluir o mandato, inclusive sob pressão das Forças Armadas, ganhou argumentos para alimentar o discurso de aliados de que sofreu um golpe. Até porque, mesmo descontando as irregularidades reportadas, Morales teria recebido pelo menos 40% dos votos nas eleições de Outubro – o que torna a crise ainda mais complexa.
A conturbada posse de Jeanine Añez, com congressistas governistas a ser impedidos de entrar no Parlamento, tampouco ajudou a acalmar os ânimos. A sua inesperada chegada ao poder ressuscitou comentários racistas dela nas redes sociais. Num tuíte de 2013, agora apagado, Jeanini Añez chama a celebração de ano novo dos Aymara de "satânica”. “Ninguém pode substituir Deus”. Noutra publicação, questiona a genuinidade de outro grupo indígena porque “eles usam sapatos”.
Segundo o Censo de 2012, a maioria dos bolivianos declarara-se católica (78%). A maioria da população (58%) é indígena - muitos dos quais compartilham a mesma cosmovisão de Evo. Mas a Pachamama, assim como outros símbolos indígenas, como a wiphala (bandeira nativa queimada em protestos opositores), então a ser encarados como um símbolo do governo que querem erradicar – nada mais distante do “reencontro, diálogo e reconciliação”, que Jeanine Añez prometeu no seu discurso de posse.
Lamentável, tudo isto, tanto de um lado como do outro... e o fanatismo totalitário, típico da moralidade universalista de origem abraâmica que a Cristandade deixou de poder impor na Europa, prolifera, pelos vistos, neste terceiro-mundo, e noutros...
Muito disto se escusava se não houvesse desde há muito tanta insistência, imperial por um lado, esquerdista por outro, em construir países multi-étnicos.
Há mais pormenores sobre este conflito, pelo que recomendo a leitura do artigo que aqui fica, a itálico, da Globo
https://epoca.globo.com/disputa-por-poder-na-bolivia-opoe-religiao-catolica-tradicoes-indigenas-24084677 - pus a negrito as partes que me pareceram mais significativas :
No prólogo da constituição boliviana, aprovada por Evo Morales em 2009, ficou gravado: “Cumprindo o mandato de nossos povos, com a força da nossa Pachamama, e graças a Deus, refundamos a Bolívia”. Mas, agora que Evo renunciou à presidência e se exilou no México, a oposição parece querer re-refundar o país.
Na Martes à noite, a auto-proclamada presidente da Bolívia, Jeanine Añez Chavez, adentrou o parlamento boliviano segurando uma bíblia grande. Era uma clara afronta ao ex-presidente, que baniu o livro sagrado do palácio presidencial em 2009, quando a nova constituição instituiu que a Bolívia é um país laico.
E essa não foi sua única afronta à tradição católica da Bolívia. Em 2010, reeleito a primeira vez, Evo saiu de uma reunião com o papa Bento XVI no Vaticano, e disse à imprensa que a Igreja deveria democratizar-se. Pediu ainda a abolição do celibato e o ordenamento de mulheres sacerdotes.
Apesar de também se declarar católico, Evo trouxe para os discursos oficiais referências às deidades da natureza veneradas na região Andina, como a Pachamama (Mãe Terra) e o Tata Inti (pai Sol). A cada Agosto, mês Pachamama, participava de oferendas, que ele considera "parte da identidade do nosso povo”.
Mas o caldo entornou de vez quando, no início de 2018, foi incluído no código penal a criminalização do “recrutamento para a participação em conflitos armados ou organizações religiosas ou cultos". A pressão da igreja foi tanta, que ele se viu obrigado a anular este artigo.
Agora parece ter chegado a hora da revanche. Luis Fernando Camacho, conhecido como “el macho”, líder da Direita porrada e bíblia, anda por aí organizando a oposição a Evo com uma bíblia na mão: “A Pachamama nunca voltará ao Palácio. Bolívia é de Cristo", diz ele numa gravação feita para as redes sociais. Num tuíte, disse que pediria a prisão de Evo e seus ministros. “ No es veganza, es justicia divina ”
Evocar justiça divina nunca prenunciou algo bom na política. Mas dar um diagnóstico preciso para o que está acontecendo na Bolívia é ignorar a complexidade da história. Apoiantes de Morales acusam um golpe de Estado, enquanto seus opositores acreditam que a sua renúncia foi o início da reconstrução democrática. Nenhuma das duas versões dá conta de explicar 100% a crise.
A história de Evo Morales fala sobre esperança e optimismo, mas também de abuso de poder. A sua política diminuiu consideravelmente a extrema pobreza - que passou de 38% em 2005, quando ele foi eleito, para 15% no ano passado - e manteve bons índices de crescimento económico, especialmente se comparado ao restante do continente, mas o seu apego ao poder preocupava até mesmo apoiantes.
Para dar um exemplo extravagante, Evo construiu um palácio presidencial de 29 andares no meio da pobre La Paz e financiou a construção de um museu de sete milhões de dólares que contém uma sala em sua homenagem. Aos poucos distanciou-se demais da imagem de primeiro presidente indígena do país, que cresceu numa casa feita de pau a pique, em Orinoca, a 430 quilómetros ao sul de La Paz. Ex-pastor de ovelhas, Evo e dois irmãos foram os únicos dos sete filhos do casal Dionisio Morales e María Ayma que sobreviveram à pobreza.
Evo disputou a um terceiro mandato em 2014 (um a mais que o permitido) alegando que o primeiro não contava porque tinha sido antes da nova Constituição. Já foi um malabarismo difícil de engolir. Dois anos depois, foi derrotado num plebiscito no qual pediu o direito de disputar a um quarto mandato, mas ainda assim forçou o sistema e conseguiu autorização do tribunal eleitoral, de maioria aliada, para concorrer a um quarto governo. Evo errou. Nenhum político, por melhor ou mais amado que seja, deve romper as regras democráticas para se perpetuar no poder.
A gota de água para a oposição foi uma auditoria da Organização dos Estados Americanos que sugere, além de outras irregularidades, que um servidor fantasma, sem supervisão oficial, assumiu o controle dos últimos estágios da contagem de voto, mudando os resultados em favor de Evo.
Evo tem forçado a barra há duas eleições, mas ser forçado a deixar o poder a dois meses de concluir o mandato, inclusive sob pressão das Forças Armadas, ganhou argumentos para alimentar o discurso de aliados de que sofreu um golpe. Até porque, mesmo descontando as irregularidades reportadas, Morales teria recebido pelo menos 40% dos votos nas eleições de Outubro – o que torna a crise ainda mais complexa.
A conturbada posse de Jeanine Añez, com congressistas governistas a ser impedidos de entrar no Parlamento, tampouco ajudou a acalmar os ânimos. A sua inesperada chegada ao poder ressuscitou comentários racistas dela nas redes sociais. Num tuíte de 2013, agora apagado, Jeanini Añez chama a celebração de ano novo dos Aymara de "satânica”. “Ninguém pode substituir Deus”. Noutra publicação, questiona a genuinidade de outro grupo indígena porque “eles usam sapatos”.
Segundo o Censo de 2012, a maioria dos bolivianos declarara-se católica (78%). A maioria da população (58%) é indígena - muitos dos quais compartilham a mesma cosmovisão de Evo. Mas a Pachamama, assim como outros símbolos indígenas, como a wiphala (bandeira nativa queimada em protestos opositores), então a ser encarados como um símbolo do governo que querem erradicar – nada mais distante do “reencontro, diálogo e reconciliação”, que Jeanine Añez prometeu no seu discurso de posse.
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Lamentável, tudo isto, tanto de um lado como do outro... e o fanatismo totalitário, típico da moralidade universalista de origem abraâmica que a Cristandade deixou de poder impor na Europa, prolifera, pelos vistos, neste terceiro-mundo, e noutros...
Muito disto se escusava se não houvesse desde há muito tanta insistência, imperial por um lado, esquerdista por outro, em construir países multi-étnicos.
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