SOBRE A ALEGADA INEFICIÊNCIA DO ESTADO
Agradecimentos ao camarada PC por ter dado a conhecer este artigo, longo mas particularmente útil: http://outraspalavras.net/destaques/estado-ineficiente-mito-mediocre/
A ideologia liberal defende a ideia de que a iniciativa privada é capaz de produzir bens e serviços de forma eficiente e barata; enquanto o Estado, considerado ineficiente e corrupto, seria simplesmente um obstáculo ao bom funcionamento do mercado. Trata-se de uma ideologia maniqueísta, pregando sempre a dicotomia Estado ruim versus mercado bom. Em muitos casos, tal percepção discriminatória se mostra de acordo com a realidade e, quando posta em prática por um determinado governo, torna-se uma profecia auto-realizável.
Segundo a mesma lógica, os funcionários públicos são considerados ineficientes e preguiçosos. Trata-se de um preconceito comum e persistente, mesmo diante do facto de que existem funcionários exemplares nos mais variados sectores públicos, e de que, em instituições privadas, há empregados que, adaptados à cultura empresarial, conseguem ser premiados mesmo esquivando-se do trabalho ou usando formas pouco éticas.
A base da argumentação, para quem defende esse ponto de vista maniqueísta, refere-se à questão da estabilidade. Por lei, funcionários públicos têm direito a estabilidade no emprego após passar por um período de avaliação probatória durante três anos. Tal facto justificaria o senso comum de que eles trabalham menos do que aqueles que se empregam em empresas privadas. Essa explicação baseia-se na premissa de que a principal motivação para a eficiência no trabalho é o medo da demissão. Na verdade, estudos modernos demonstram que essa ideia não está correcta. Há diferentes motivações para o trabalho. Os principais estímulos motivacionais, tais como a percepção de realizar uma tarefa significativa, o reconhecimento dos outros e a possibilidade de progresso podem existir ou faltar tanto na iniciativa privada quanto no funcionalismo público.
O argumento do mercado mais eficiente também não se sustenta em diversos casos. Na realidade, em alguns sectores a lógica mercadológica parece actuar de forma contrária à eficiência. No que se refere à saúde, por exemplo, é possível comparar dois sistemas situados em pólos opostos: EUA e Cuba. Os índices de expectativa de vida e de mortalidade infantil da ilha caribenha são praticamente os mesmos dos EUA. Entretanto, os gastos anuais dos EUA em saúde, por pessoa, são de U$ 5.711, enquanto Cuba gasta apenas U$ 251. Dessa forma, o Estado cubano tem um custo pelo menos vinte vezes menor para obter um resultado equivalente ao da iniciativa privada americana.
Isso ocorre porque o Estado pode investir directamente nas causas dos problemas e, assim, conduzir o atendimento médico a quem mais precisa. Em 2001, uma comissão do Parlamento Britânico visitou a ilha e relatou que o êxito da sua política de saúde é devido à forte ênfase na prevenção das doenças e ao compromisso com a prática de medicina voltada para a comunidade. Tal procedimento gera melhores resultados com menos recursos. O mercado sempre segue cegamente a lógica da maximização do lucro, que nem sempre se mostra a mais eficaz para lidar com problemas sociais; ou, nos termos de Bill Gates: “capitalismo significa que há muito mais pesquisa sobre a calvície masculina do que sobre doenças como a malária.”
No caso da ideologia liberal no governo, diversas vezes o que ocorre é uma profecia auto-realizável. Parte-se do princípio de que o Estado é ineficiente e corrupto, isso leva o Estado a investir pouco, pagar mal aos funcionários e sucatear os serviços públicos. O pouco reconhecimento e as más condições de trabalho geram insatisfação e greves. As paralisações tornam-se mais um argumento para afirmar que o serviço público é inerentemente ruim.
(...)
É preciso analisar pontualmente as situações em que o Estado tem mais gastos ao oferecer directamente serviços públicos. Na maior parte das situações, os maiores custos advêm de acções de transparência pública. Servidores devem ter a qualificação necessária e precisam ser contratados através de concursos públicos, e os gastos públicos são justificados e controlados através de processos de licitação e prestação de contas. Essa transparência tem como objectivo evitar actos indevidos e arbitrários, sendo condição necessária para o controle de práticas desonestas e anti-éticas. Nas instituições privadas prestadoras de serviços, os profissionais são escolhidos pela empresa e o uso do dinheiro do governo não é controlado da mesma forma rígida utilizada na esfera pública para monitoramento de gastos.
Soluções possíveis para tal problemática seriam o controle e a fiscalização rígida, exercidos pelo Estado, nas empresas contratadas para executar serviços da esfera pública. No entanto, chega-se a uma contradição. Para que haja uma boa fiscalização por parte do Estado, o governo deverá ter mais infra-estrutura, pagar a mais funcionários, ter mais custos com manutenção, dentre outros investimentos. Além disso, se a convicção liberal é a de um Estado intrinsecamente ineficiente e corrupto, de que adiantaria monitorizá-lo? Essa é uma contradição do discurso liberal. Na verdade, em muitos casos, ao invés de o Estado se tornar mais eficiente ele se transforma no melhor parceiro que a iniciativa privada poderia ter.
A noção de Estado como local privilegiado de corrupção é sustentada igualmente por preconceitos ideológicos. Na verdade, pode-se afirmar que o Estado pode ser eficiente e o mercado corrupto, não havendo qualquer relação obrigatória entre esses termos. A corrupção do Estado é um problema real que deve ser combatido através de acções de transparência pública e da prestação de contas à sociedade. (...)
Entretanto, a corrupção não é exclusividade do Estado. No que se refere a processos de sonegação fiscal, classificado como corrupção privada, uma pesquisa da organização britânica Tax Justice Network aponta perdas muito maiores para o país: 280,1 biliões de dólares por ano.
Assim, o mito do governo ineficiente e corrupto é um discurso amplamente disseminado porque auxilia muitos grupos, inclusive aqueles que lucram à custa do próprio Estado. É preciso determinar políticas públicas de acordo com o que seja melhor para a sociedade como um todo, sem a interferência indevida de ideologias e de preconceitos criados e corroborados pelo senso comum.
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