segunda-feira, dezembro 27, 2010

«TERRA EM CHAMAS»


Em Novembro, adquiri finalmente o livro que já esperava deste pelo menos finais do ano passado: «Terra em Chamas» («The Burning Lands»), de Bernard Cornwell, que entretanto acabei há dias de ler. Afortunadamente, consegui, nas quase quatrocentas páginas do volume, ultrapassar o hiato de quase um ano e reentrar novamente na narrativa que o autor inglês engendra com a sua habitual mestria. Já aqui disse que, ideologicamente, algumas passagens da sua já vasta obra metem algum nojo, pingando de anti-racismo politicamente correcto, mas vá lá que na sua saga «Histórias Saxónicas», da qual «Terra em Chamas» é o quinto volume, não se lhe nota a anti-racistice: o seu multiculturalismo está aqui muito dissipado. E claro, independentemente do pendor ideológico do autor, anti-racista e tendencialmente arreligioso, até mesmo ateu, há que saber apreciar-lhe a qualidade da escrita, nomeadamente no que respeita à caracterização das personagens e ao interesse vivaz dos enredos, tudo muitíssimo bem sustentado por uma erudição histórica tranquilizante, isto é, pode-se estar descansado a ler o livro sem receio de apanhar com forte aldrabice ou deprimente anacronismo. Das poucas vezes em que altera a realidade histórica, ou a deturpa de algum modo, Cornwell tem a decência de o explicar em nota anexa à narrativa ficcional.

«Terra em Chamas» é mais uma jornada da vida de Uthred de Bebbanburg, saxão nascido na Nortúmbria que em criança foi raptado por Viquingues dinamarqueses e mais tarde regressou ao convívio da sua gente saxã, embora nunca tenha deixado de nutrir forte apreço pelos Dinamarqueses - e isto marca toda a narrativa dos cinco volumes, pois que em todos eles Uthred saltita frequentemente de um lado para o outro, estando a sua simpatia quase sempre com os Escandinavos, mas forçando o Destino a sua pertença ao lado saxão. Esta sua simpatia pelos piratas do Norte, que além de o raptarem também lhe chacinaram a família, é talvez a parte multiculturalista da coisa, um pouco a fazer pensar numa espécie de síndroma de Estocolmo, mas enfim - ao fim ao cabo, o inglês contemporâneo não deixa de estar, de certa maneira, na mesma encruzilhada étnica que Uthred, ou não fossem os Ingleses de raiz quase simultaneamente saxónica e dinamarquesa. Falta, obviamente, o «quase», visto que os Saxões acabaram por conseguir repelir os Dinamarqueses e sobrepôr-se a estes por todo o território britânico - ainda assim, o sangue dinamarquês não deixa de estar fortemente presente nas veias inglesas, pelo menos na costa leste da ilha. Acresce que, ao fim ao cabo, Saxões (e Anglos) e Dinamarqueses são todos germânicos, pelo que aquilo fica de certo modo tudo em família... Por outro lado, é igualmente o tema multiculturalista que já se expunha numa outra grande saga medieval do autor, também aqui comentada, «Crónica do Senhor da Guerra», sobre a época arturiana: tanto nesta como na saxónica, o herói da história pertence a um determinado Povo pelo sangue mas a outro pela educação... e, por princípio, mostra simpatia pela estirpe que o educou, não pela do seu sangue... a mentalidade dos desenraizados e dos apátridas, sem dúvida, dos que estão dispostos a transformar-se ou a deixar que os eventuais donos do mundo os transformem no que for conveniente aos desígnios dos mais fortes, passando assim por cima de etnias e de raças...

Independentemente disso, «Terra em Chamas», bem como os anteriores quatro volumes, não deixa de constituir uma narrativa empolgante, merecedora de leitura - sempre cum grano salis em termos ideológicos, claro está. Basicamente, é mais do mesmo, mas quando o mesmo é bom e não cansa, venha ele, renovado mas mantendo a sua estrutura. De resto, e voltando ao conteúdo ideológico, não posso deixar de enaltecer o realismo e ao mesmo tempo o pendor pró-pagão - sem cair em maniqueísmos grosseiros - de toda a obra, pelo menos até agora (também a «Crónica do Senhor da Guerra» parecia pró-pagã e no fim trocou as voltas...)...