«CENTURION»

Já desde Maio, senão mesmo Abril, que esperava pelo filme britânico «Centurion», que vi anunciado no cinema apenas para não mais ouvir falar dele. Finalmente, estreou-se num ecrã português, tendo abrilhantado o ciclo temático «Motel X», que decorreu nos últimos dias no cinema S. Jorge, em Lisboa. Se em Portugal não chegar às outras salas de cinema, será por estúpida injustiça, visto que supera largamente a maior parte das películas que se podem ver no Lusomundo.

Basicamente, o conteúdo «Centurion» consiste no seguinte
, e passo a citar, a partir da página web do Motel X:

Durante a conquista romana da Britânia, no século II, os guerreiros pictos mantêm a resistência ao avanço dos soldados romanos. Quintus Dias, centurião romano, filho de um gladiador lendário, comanda um grupo de soldados num ataque a um campo picto para salvar um general feito prisioneiro durante uma sangrenta batalha. Mas nem tudo corre da melhor forma, e os romanos vêem-se perseguidos por um grupo dos mais perigosos e cruéis guerreiros pictos que, liderados por uma bela e mortífera batedora, tudo farão para saciar a sua sede de vingança.

É, em primeiro lugar, um bom filme de acção. Quanto ao tema que o levou a este festival, não pode dizer-se que contenha demasiado «gore», ou «sangue a rodos», como se esperaria, e ainda bem que, mesmo assim, lá acabou por ser exibido, ainda para mais no luxo infelizmente desusado que é a sala 1 do S. Jorge. As cenas de batalha afiguram-se deveras realistas, com alguns pormenores de notória brutalidade, mas por acaso até vi cenas mais violentas por exemplo no filme «Alexandre», nomeadamente na batalha contra os Persas (aquela que é constantemente sobrevoada por uma águia) do que em qualquer confronto encenado em «Centurion».

Historicamente, é bastante jeitoso, podendo ou não deixar passar um ou outro anacronismo menor. Ideologicamente, escapa à onda multiculturalista reinante, o que é sempre notável - lá tem pelo meio um soldado romano negro (da Núbia), mas pouco relevante, e ainda por cima ligeiramente canalha, o que não é costume, nesta altura (fosse o filme americano e o africano era bonzinho e invencível quase de certeza). Tem outro que é do oriente semita (embora oriundo do «Hindu Kush», numa altura em que tal nome nem existia, enfim...), mas pouco se destaca.

Fazendo jus à maturidade europeia, «Centurion» não mostra uma guerra entre «bons» e «maus» (embora no fundo os Romanos sejam talvez um bocadito mais culpabilizados, e com razão), mas entre gentes compreensivelmente brutais, vitimadas pela crueldade do inimigo, pois que em toda a parte há bons e maus. De um lado, o Povo indígena, acossado e oprimido na sua própria terra, em busca de vingança, do outro, uma mão cheia de soldadesca romana, de origens diversas, que até nem são maus rapazes e estão é a ver se safam o coiro, sem contudo se eximirem de cumprir o seu dever para com os camaradas e para com a honra.

A actriz Olga Kurylenko, «bond girl», desempenha aqui o papel de uma guerreira picta muda, «Etain», que «trai» os Romanos e se torna no seu grande algoz, sendo fiel ao seu Povo e vingando-se assim do mal que os invasores oriundos do Lácio lhe tinham feito. A mudez da indígena consegue a um tempo realçar a sua beleza e ajudar a compor uma aura relativamente temível, ou, pelo menos, belicamente eficiente e implacável.

O realismo com que os Pictos são representados merece louvor, nomeadamente porque falam sempre entre si uma arcaica língua céltica (e não apenas «no princípio» só para dar o gostinho «exótico», mas sempre), parece que é o goidélico escocês. Talvez os Pictos não fossem sequer celtas, ou, em sendo-o, pertencessem na realidade ao grupo britónico, e não ao goidélico, mas enfim, está aproximado e é sempre um luxo poder ver disso no cinema, numa época em que se diz que um filme com muita conversa que não seja em Inglês «é pouco comercial» [é inverosímil mas verdadeiro que uma jovem a trabalhar numa bilheteira da Lusomundo me tenha dito aqui há tempos que se calhar era melhor não comprar os bilhetes para ver «Pathfinder», porque «muita gente tinha-se queixado» porque «eles (personagens) estavam para aí vinte minutos a falar Russo» (aliás, Islandês)].

Um dos pontos fortes do filme é sem dúvida o aspecto estético, não apenas pela reconstituição histórica das batalhas, das armaduras e armamentos romanos e pictos, mas também pelas magníficas paisagens, que são realmente, segundo o próprio realizador, as da Escócia, inundadas de névoa, majestosamente reinante entre as montanhas e vales das entranhas europeias.

Para quem aprecia a História da Europa bárbara, de cunho proto-histórico, o filme é a não perder, sobretudo para os que mais estima tiverem pela Lusitânia e arredores. Pessoalmente, há muito que me parece haver substancial parecença entre Pictos e Lusitanos: ambos são particularmente arcaicos, sobre ambos há a dúvida de serem ou não célticos, o carácter indo-europeu de ambos parece todavia estar já estabelecido, e ambos derrotaram por diversas vezes a mais poderosa e eficiente máquina de guerra do mundo antigo, que foi a legião romana, usando para isso astuciosas tácticas de guerrilha, servidas por uma ferocidade que os tornava particularmente temidos por parte das tropas imperiais.

Só não há é nenhuma referência à religião, nem do lado picto nem do romano, mas enfim, não há filmes perfeitos.