quarta-feira, março 11, 2020

ZONA MEDIANAMENTE AFRICANIZADA É ATERRORIZADA POR ASSALTOS

Antigamente, os moradores da Mouraria deixavam a porta de casa aberta e ninguém entrava. As recordações de um dos bairros mais famosos e genuínos da capital vão desvanecendo com o tempo e há cada vez menos moradores para contar histórias. Há uns anos, a dona Laurinda saía às onze da noite com o marido para ir ao Rossio comer gelados. Hoje, Laurinda está sozinha e circulam nas estreitas ruas do bairro que ecoa fado papéis com o título “Fraude”. Há avisos colados nas portas da drogaria, nos cafés e na loja de electrodomésticos da Rua de São Cristóvão, junto à igreja. Os moradores queixam-se de que por ali não passam agentes da Polícia de Segurança Pública e que o cenário piorou desde que a esquadra da Mouraria fechou, em 2014. 
Ainda que não queiram ser identificados, alguns moradores já foram vítimas de assaltos. E quem rouba tem um método muito peculiar. Primeiro, estuda a vizinhança e tem na mira as viúvas que vivem sozinhas. Os moradores da rua de São Cristóvão contam-se pelos dedos e já foram assaltadas três mulheres que receberam uma chamada do senhor Tomás, o dono da loja de electrodomésticos, a dizer que estava num funeral. “Vão aí entregar uma encomenda, mas estou num funeral. A senhora importa-se de receber, pagar e depois dou-lhe o dinheiro?”, diz alguém do outro lado do telefone. As mulheres aceitam, pensando que é mesmo o senhor Tomás dos electrodomésticos e pagam a encomenda. Uma delas pagou 300 euros e só depois descobriu que não era o vizinho que conhece há anos, mas sim alguém que se fez passar por ele. “É que a voz é igual”, explicam. O papel colado nas portas alerta para isso mesmo: estão a burlar pessoas em nome de um vizinho. 
Laurinda, dona da drogaria que ainda sobrevive na Mouraria, deixou de ter a loja aberta até à noite. “Às quatro da tarde vou embora, porque tenho medo. A gatunagem mete-se ali escondida nas escadas”, diz a mulher de 85 anos, que abandonou o bairro por ter medo de viver ali sozinha, mudando-se recentemente para Moscavide. O ambiente na Mouraria alterou-se e basta subir as Escadinhas da Saúde, que ligam o Martim Moniz à Rua Marquês Ponte de Lima, para perceber: ruas estreitas, quase vazias, olhares desconfiados, uma sensação de insegurança e nenhum polícia. Maria, uma lisboeta que passeia por aqueles lados garante que sempre que passa por aquela rua sente medo e já foi obrigada a mudar a sua rota, porque estava a ser seguida. “Estavam dois homens a olhar muito para mim e eu ia sozinha, desci a rua e encontrei mais homens com um ar suspeito, voltei para trás e tentei acompanhar um casal para me proteger”, contou. 
No Largo de São Cristóvão, num banco junto à igreja, ouve-se música ainda antes do meio-dia. “Bebem, vendem droga e isto piora ao longo do dia”, diz Laurinda, que acrescenta que o problema da insegurança tem vindo a aumentar e que há falta de policiamento nas ruas. “Isto era uma zona tão sossegada e agora está assim”, lamenta Violeta, uma das moradoras mais antigas da Mouraria que diz ter cada vez mais medo de andar na rua. Dentro da drogaria da dona Laurinda – que já foi assaltada três vezes –, quando o assunto é segurança, ou a falta dela, os clientes dizem sempre o mesmo: “Está cada vez pior e não há um polícia a passar”.  
A arte de roubar turistas Em frente à Igreja de São Cristóvão só não há dias maus para o turismo. Seja sábado, ou quarta-feira, multiplicam-se os turistas a pé, de tuk tuk e até mesmo de bicicleta. A maioria segue caminho acompanhada pelos guias turísticos que explicam aos grupos de cerca de dez pessoas – em Inglês, Português ou Alemão –, que aquela zona “já não é perigosa”.
A dona Laurinda não confia e funciona como uma espécie de fiscal de segurança turística. “Não sei falar lá a língua deles”, diz. Mas os gestos são universais e a proprietária da drogaria faz o gesto para os turistas mudarem as mochilas das costas para a frente e faz um movimento de roubo. “Eles põem logo, é que se eles levarem a mochila à frente não há perigo. Vão distraídos e aparece logo um a fingir que é turista com um mapa na mão, pergunta onde fica isto e aquilo e está outro a roubar por trás”, explica Laurinda o mecanismo de roubo, acrescentando que “roubam turistas praticamente todos os dias”. 
E a propósito dos roubos a turistas, salta-se da Mouraria para Alfama, onde o cenário é praticamente igual e as histórias se repetem. Estão dois turistas a almoçar numa esplanada e chegam outros dois turistas, que mais não são do que assaltantes disfarçados. Enquanto olham para a ementa, fingindo que estão a escolher um prato, vão deitando o olho, e as mãos, às malas daqueles que estão sentados. Estes são os relatos feitos pelos proprietários dos restaurantes e cafés. “Já não é a primeira vez que agarro num pau ou numa faca ou numa coisa qualquer e digo: ‘Meu amigo, tu estás a ver a ementa, mas estás a olhar para a mochila do vizinho que está ali à mesa’”, explica Mário Cruz, proprietário da Tasca de São Miguel. “O policiamento não existe há cerca de três anos”, diz, acrescentando que “em Alfama, das dez horas da noite até à meia-noite – que é a altura mais crítica – não se vê um polícia na rua, nem um, e antes havia sempre um polícia por perto”.
Em Alfama, apesar de haver cada menos “filhos” do bairro, há ainda espaços onde se juntam moradores para jogar snooker e conviver. Na Associação Boa União, uma das colectividades que organizam as festas dos Santos Populares, há também a sensação de que o policiamento é cada vez menos. “Os de cá não fazem mal aos de cá. E com isto já disse tudo”, alertou Joana, funcionária do espaço. 
As causas para a falta de segurança são várias e passam pela diminuição da população residente e pelo aumento do turismo. “Antigamente, mesmo com toda a população que nós tínhamos em Alfama, havia muito mais segurança. Nós próprios de Alfama protegíamo-nos uns aos outros. Se houvesse um stresse com alguém daqui era resolvido na hora”, diz Mário Cruz. Agora, acrescenta, “com toda esta mudança de as pessoas serem escorraçadas das casas devido ao turismo, a população de Alfama foi diminuindo drasticamente e temos aí ruas completamente desertas, como a Rua da Regueira e a Rua de São Miguel”.  
Em Alfama, os assaltantes não roubam apenas as mochilas dos turistas e chegam mesmo a entrar nos alojamentos locais que se multiplicam. “Alfama está muito direccionada ao alojamento local, o turista vai beber o seu copo, alguns moram no rés-do-chão, deixam a janela aberta, primeiro andar com uma porta da varanda aberta, e a falta de policiamento é isso mesmo: é que estão a ser regularmente assaltados. Além de levarem tudo o que o piso tem, como televisores, também são assaltadas as pessoas, documentos, dinheiro, além das agressões”, explica.
Ao i, Miguel Coelho, presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior – a que pertencem os bairros de Alfama e da Mouraria –, referiu que “têm chegado alguns sinais de preocupação por parte da população das zonas mencionadas, no que respeita à insegurança sentida”. E sublinhou: “Importa esclarecer que as juntas de freguesia não têm qualquer competência legal em matéria de segurança e, por consequência, não podemos directamente aplicar medidas da nossa autoria”. Miguel Coelho referiu ainda que tem reforçado a comunicação com os comandos policiais e com o Ministério da Administração Interna. “No mês de Fevereiro, fui pessoalmente recebido pelo senhor ministro com a pasta, Eduardo Cabrita, a quem tive a oportunidade de expor a situação, na expectativa de que sejam enveredados os esforços necessários para maior segurança nos bairros mencionados”. 
O i pediu esclarecimentos à Polícia de Segurança Publica, que actua em articulação com o Ministério da Administração Interna, sobre o número de ocorrências registadas nestes dois bairros e sobre a possibilidade de aumentar a fiscalização, mas até à hora de fecho desta edição não obteve qualquer resposta. 
Falta de iluminação e de esquadra Longe da música e do cheiro a grelhados da Associação Boa União, nas ruas labirínticas de Alfama ecoa um silêncio intimidador que aumenta com a pouca luminosidade em cada beco. Os candeeiros já iluminaram mais, também já estiveram mais limpos e Mário Cruz, que tem 40 anos de Alfama, adivinha que estes “não são vistoriados se calhar há mais de 20 anos”. 
Este morador já perdeu a conta às queixas que fez, quer por causa da falta de iluminação que traz mais insegurança, quer devido à falta de policiamento. E conta ainda que há dois anos teve um problema no seu estabelecimento e os agentes demoraram duas horas a chegar, porque não tinham um veículo disponível, tendo sido obrigados a ir a pé. “A segurança legal [do Estado] não existe, então eu sou obrigado a pagar segurança”, acrescenta. 
Em Alfama também já não existe esquadra da PSP. A esquadra de Santa Apolónia foi transformada numa esquadra de turismo “e colocaram a esquadra normal na Baixa, na Rua da Prata, onde nem existe um lugar de estacionamento para os carros da polícia”.Desde 2012 têm fechado várias esquadras da PSP – 14 no total – e, se o objectivo inicial era reforçar o policiamento de proximidade, essa meta tarda em ser atingida.
Às quatro da tarde, Laurinda fecha as portas, Violeta já deixou o banquinho onde se senta e as ruas ficam mais vazias à medida que o sol vai desaparecendo. Em Alfama, as noites são piores e fora da colectividade a falta de iluminação abre espaço para assaltos. 
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Fonte: https://ionline.sapo.pt/artigo/688507/mouraria-e-alfama-os-bairros-foram-invadidos-pelos-assaltos?seccao=Portugal&fbclid=IwAR0xgP3lUyYipP3H9ZdvK9NyKXzPHQDUA-5ImuMoas1ptZQql_T4Zxn4GXU