«BRANCA DE NEVE E O CAÇADOR»

Ide ver, cambada, enquanto é tempo. O filme merece uma boa dose de atenção, pela riqueza sóbria que consegue dar ao clássico conto infantil da Branca de Neve e dos Sete Anões, cuja fonte directa é a colectânea de contos populares da autoria dos alemães Grimm, mas que parece ter vários paralelos noutras tradições folclóricas europeias, como aqui se lê: http://en.wikipedia.org/wiki/Snow_White#From_other_European_traditions . O facto de ser feito predominantemente com actores europeus dá-lhe especial consistência, que uma saga destas, testemunho de identidade europeia e prenhe, na película, de um sentido de grandeza arcaizante, não se filma em boas condições com sotaque americano. A beleza das actrizes também dá o seu contributo para que o produto seja agradavelmente consumido. Trata-se de um filme de massas, sem dúvida, no seu melhor sentido, usualmente ignorado por quem nutre pretensões elitistas. Não há, na realidade, acção culturalmente mais meritória do que levar ao povo uma vivificação energizante das suas raizes étnicas, independentemente das lacunas ou passagens menos bem conseguidas que o trabalho concluído possa apresentar, nomeadamente ao nível do lugar-comum. Algumas opções poderão ser as melhores, tais como a de transformar a perseguidíssima heroína numa guerreira de espada, espécie de Joana D'Arc, mas enfim, a ideia, embora pareça vulgarizante, não deixa por outro lado de bater certo com o espírito algo céltico da realização, constatável de forma flagrante logo no início, quando são postos na boca da «rainha má» dizeres obviamente semelhantes aos de Deirdre na literatura épica irlandesa. Repare-se:

No filme - a rainha má, Ravena, observando os corvos na neve, diz «Lábios, vermelhos como o sangue. Cabelo, preto como a noite. Traz-me o teu coração, minha querida querida Branca de Neve. »

Na saga céltica da «Morte dos Filhos de Uisliu», narrada no Táin Bó Cúalnge ( «A Razia das Vacas de Cuail» ), a bela Deirdre descreve o homem com que sonhou, através da contemplação de um corvo a comer um coelho morto na neve: «É com isto que ele se parece: cabelo preto como o corvo, lábios vermelhos como o sangue, pele branca como a neve.»...
No campo das referências de sabor céltico, observa-se também a analogia entre a tétrica «rainha má», na medida em que está continuamente rodeada de corvos, quando não neles transformada, e uma das principais Deusas célticas irlandesas, Morrigan - «Grande Rainha» = Mor + Rigain - Entidade com o Seu quê de sinistro, habitualmente simbolizada no corvo.

Não pode entretanto olvidar-se a maneira séria, e ao mesmo tempo perfeitamente fluída, com que no filme é referida, ainda que vagamente, a sacralidade da Floresta. Isto é, inequivocamente, estar no bom caminho...