quarta-feira, dezembro 10, 2025

SOBRE RESISTÊNCIA E IDENTIDADE EM LIÇÕES DA UCRÂNIA E DA RESTAURAÇÂO

"A guerra na Ucrânia vai-se resolver no campo de batalha, quando um deles se considerar vencido, tiver colapsado e assinar a rendição, quer os EUA ou a UE queiram ou não. Kiev viveu anos debaixo da ditadura soviética e o povo não quer a ela voltar, “better dead than red” era um lema ouvido há anos, que embora a Rússia não seja já 'red', ideologicamente continua a ser um regime autocrático e a manter todos os tiques geopolíticos da anterior ditadura.
Esta constatação fundamental mostra que, para os Ucranianos, esta guerra não é apenas territorial ou geopolítica. É uma rejeição visceral de um passado que não querem repetir, um passado marcado pela opressão e pela anulação da sua identidade. A memória histórica continua viva na sua consciência colectiva, e é essa memória que lhes dá a determinação que muitos observadores ainda não compreenderam.
Esta experiência que não esqueceram torna-os resistentes, e mesmo que percam o conflito clássico, começarão uma guerra de libertação, de resistência, uma guerra irregular que terá graves consequências para a potência ocupante. A História tem sido implacável com as potências que tentaram subjugar Povos que já tinham decidido resistir até ao limite. Uma ocupação apenas funciona quando o ocupado abdica de si próprio, coisa que os Ucranianos não farão. Se a guerra convencional não lhes for favorável, iniciarão a guerra que sabem travar como ninguém, a guerra clandestina, dispersa, persistente, que corrói a autoridade do invasor e que transforma qualquer vitória militar numa derrota política.
Esta minha análise baseia-se na observação da guerra nestes quase quatro anos, onde se criaram laços identitários fortíssimos contra o Povo Russo, tendo inclusive provocado um cisma na Igreja Ortodoxa que se libertou dos laços do patriarca de Moscovo. Poucas vezes se viu, em tão pouco tempo, uma mutação identitária tão profunda na Europa contemporânea. O conflito tem reforçado a língua, as tradições, as memórias e as fronteiras culturais que durante anos se encontraram difusas. O próprio cisma na Igreja Ortodoxa mostra que a ruptura não é apenas militar ou política, mas espiritual. Quando um Povo se separa espiritualmente de quem o dominou, a reconciliação forçada torna-se impossível.
A dimensão identitária da resistência ucraniana não se limita ao factor linguístico, embora a presença de uma população russófona no país possa ser importante e auxilie na construção de um conceito mais amplo de identidade. A língua própria da Ucrânia serve como um pilar fundamental da afirmação nacional e da rejeição do passado soviético e autocrático, mas a identidade ucraniana sobrepõe valores culturais, espirituais e históricos que vão além do idioma. Inclui movimentos nacionalistas como a OUN e o UPA, que protagonizaram lutas por autonomia desde o século XX. Essa identidade sofreu uma transformação profunda pela resistência e pelo conflito, reforçando tradições, memórias e espiritualidade, como demonstra o cisma na Igreja Ortodoxa ucraniana que se libertou da influência do patriarcado de Moscovo.
Essa situação guarda paralelos com a identidade portuguesa durante a Restauração de 1640 e a subsequente guerra contra o domínio dos Filipes, quando a cultura, a língua e a memória colectiva foram essenciais para manter uma vontade de independência viva, apesar do domínio de um império formado por Carlos V e sucessores. Portugal não lutou sozinho, tendo contado historicamente com apoio aliado para enfrentar esse poderoso império, uma realidade semelhante hoje para a Ucrânia, que precisa do apoio europeu incondicional para manter a resistência. Nenhum Povo consegue, sozinho, vencer um império tão vasto e estruturado, o que reforça a importância das alianças internacionais na preservação da identidade e da liberdade.
Se tiver apoio europeu, sem linhas vermelhas, poderá conseguir resistir, pois todos estamos à espera que a Rússia colapse por dentro, senão a guerra irregular, não convencional, começará e sabemos o desgaste que por exemplo o Afeganistão causou quer na Rússia quer na NATO que se retiraram à pressa. A Europa tem aqui uma responsabilidade histórica. Ou ajuda a Ucrânia a manter o conflito no plano convencional, impedindo a vitória russa, ou condena o continente a décadas de instabilidade. A falta de apoio não trará paz. Trará apenas uma guerra diferente, ainda mais longa e imprevisível, que minará a segurança europeia de forma irreversível. A Rússia sabe bem o que significa enfrentar uma população inteira que se recusa a ser governada. Mas parece acreditar que, desta vez, a História será indulgente. Não será.
Agora que estamos a comemorar o 1 de Dezembro em Portugal e a revolta dos conjurados, percebemos melhor a Ucrânia porque as guerras contra Espanha que se seguiram duraram quarenta anos, só tendo terminado na batalha de Montes Claros. Esta comparação ilumina o presente com a luz do nosso passado. Portugal não garantiu a sua liberdade no dia da Restauração. Apenas a retomou. O verdadeiro combate prolongou-se durante quatro décadas, até que Montes Claros demonstrou definitivamente que Portugal não regressaria ao domínio espanhol. A Ucrânia vive algo semelhante. Resistiu ao primeiro embate, tal como nós resistimos ao tumulto inicial de 1640, mas agora enfrenta o longo corredor do tempo, onde a vontade e a persistência valem tanto como a força das armas.
E tal como Portugal precisou de tempo, também a Ucrânia necessitará dele. A independência não se declara e encerra num acto. Sustenta-se. Afirma-se. Reafirma-se. Ao lembrarmos o 1 de Dezembro compreendemos melhor que a liberdade é uma obra prolongada e exigente. A Ucrânia está a percorrer o mesmo caminho. E sabe, tal como nós soubemos, que há batalhas que não se travam apenas pela sobrevivência física, mas pela sobrevivência moral e identitária de um Povo. A Ucrânia decidiu que não voltará atrás. E quando um Povo assume essa decisão, nada, nem mesmo a violência de um império, o consegue subjugar.
Esta guerra prolongada e a resistência ucraniana demonstram a força da identidade nacional, a rejeição do passado autoritário e a importância das alianças para manter a liberdade, factores que se reflectem em paralelos históricos com Portugal e que indicam a complexidade da situação geopolítica actual na Europa. No fim, a lição é clara: a liberdade não se conquista por decretos, só se mantém por decisão colectiva e coragem inquebrantável."
Testemunho do Coronel Nuno Pereira da Silva | 1 de Dezembro de 2025

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Também já tinha reparado nisto, há demasiada gente em Portugal que desconhece o colossal esforço da Nação em 28 anos de guerra durante a hoje quase esquecida Guerra da Restauração, na qual os Portugueses tiveram de contar com auxílio estrangeiro, nomeadamente o apoio inglês, a troco da cidade indiana de Bombaim, entre outras coisas...
Quanto à actual gesta ucraniana, é, efectivamente, de um épico verdadeiramente exemplar. Zelensky já é um Viriato dos tempos modernos. Um nacionalista que escrevesse uma obra de ficção propagandística em que o lado dos bons fosse o de uma Nação branca europeia e, o dos maus, fosse representado por um império multirracial, pois este ideológico Tolkien não inventaria nada mais paradigmático do que o actual conflito entre a Ucrânia e a Rússia - e o mais sintomático é que os putineiros que por aí andam nem sequer negam nada do que eu disse acima, simplesmente arengam que
- «a Ucrânia está a ser manipulada pelo Ocidente!» quando afirmam que a Rússia teve direito a invadir solo ucraniano «por causa do golpe de Estado de Maidan», como se um Povo não pudesse decidir a sua política interna (aprovariam também uma invasão franquista em Portugal depois de Abril de 1974?), ao mesmo tempo que invocar a teoria da manipulação ocidental é dar por caralhamente adquirido que os Ucranianos não têm agência nem escolha própria e não estão fartos de ser dominados por um império, como também estavam os Estónios, os Letões, os Lituanos, os Polacos, e claro, os Portugueses,
- «há genocídio de russos na Ucrânia!», aldrabice pegada já mais que desmentida e bem menos relevante, para um nacionalista, do que o facto de que, se há russos que não estão bem na Ucrânia, nada os impede de pura e simplesmente passarem a fronteira para o seu país de origem, que tem 17 milhões de quilómetros quadrados,
- «a língua russa foi proibida na Ucrânia!», o que é igualmente mentira deslavada, mas que, mesmo que fosse verdade, constituiria um direito óbvio, fundamental e básico dos Ucranianos na sua própria terra, aliás, lembro-me de uma pequenita reportagem de há uns quinze anos ou mais, talvez, em que crianças ucranianas na Crimeia (ou no Donbass?) se lamentavam porque em casa falavam Ucraniano mas na escola tinham de dar prioridade ao Russo, isto disse-me o essencial do que é preciso saber sobre o que lá se passa, muito bananas têm sido os Ucranianos, os Portugueses não admitiam uma merda dessas, não tolerariam que houvesse uma só escola primária em Portugal em que o Castelhano fosse ensinado por cima do Português,
- «os Russos têm direito a manter distância da OTAN, os Américas também impediram a colocação de mísseis em Cuba!», como se houvesse mísseis da OTAN na Ucrânia e como se os Russos não tivessem no tempo da URSS invadido a Polónia, a Hungria e a Checoslováquia, ficando assim paredes-meias com países da OTAN, e como se o caga-tacos ex-KGB não tivesse já estacionado mísseis nucleares na Bielorrússia, mesmo ao lado da Polónia, sem que a OTAN tivesse por sua vez colocado armas nucleares na Estónia, e por falar em Estónia, como se esta não estivesse ainda mais perto de Moscovo do que a Ucrânia, aliás o mal dos Ucranianos foi precisamente o de não terem entrado na OTAN ao mesmo tempo que os Estados Bálticos,
- «a Europa de leste é área de influência russa!», como se se devesse dar implicitamente por adquirido que países soberanos europeus precisam de ser uma espécie de bairros sociais desgraçadinhos onde os «bósses» do crime organizado mandam mais que a polícia, e tudo isto mete incomparável nojo, e demasiados alegados nacionalistas não sentem essa repulsa e que, mercê da sua adoração do líder supremacista, estão perfeitamente à vontade para mandarem o etnicismo soberano às urtigas, o que significa que não são nacionalistas e sim patrioteiros supremacistas com mentalidade de gangster que só respeitam a lei do mais forte, se calhar é de verem demasiadas séries televisivas passadas em prisões, parecem adolescentes que nunca saíram do recreio escolar onde quem manda são os bullies, uma desgraça pegada.
Não há pois Nacionalismo sério que não seja soberanista e que evite por isso toda e qualquer subalternização da Nação a um Estado estrangeiro imperial, o que significa que as alianças com outras soberanias se revelam cruciais para a salvaguarda nacional.